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Noivos e noivas gay: "eles e elas andam aí?"

Os processos de construção de uma consciência crítica sobre a homossexualidade e sobre a união entre pessoas do mesmo sexo não vão tanto num combate violento às homofobias (ainda que infelizmente continue a ser necessário), mas mais numa ?prevenção? do heterossexismo presente na nossa vida de todos os dias.

Enquanto pessoas vivas, provocadas na relação com os outros e com as coisas, não nos podemos alhear da questão que parece estar no centro da problemática do casamento entre pessoas do mesmo sexo: a existência, ou não, do direito à vivência em comum, como casal, jurídica e socialmente reconhecida. Ainda que existam representações sociais diferentes acerca da democracia política e social, queremos acreditar (ingenuamente, talvez, diriam os/as cínicos/as) que todos/as nós procuramos uma ideia de sociedade onde, minimamente, seja feliz viver, com todas as pessoas e com todas as suas manifestações individuais e colectivas. Numa altura em que a produção de discursos políticos, religiosos e comunitários é multifacetada, hetero-interpretada, produção essa que circula nos meios públicos de comunicação social, muitos e muitas homossexuais vão assistindo à fabricação de ?verdades?, sobretudo no silêncio e na distância, sobre uma realidade prática que lhes é subjectivamente própria.
E todavia, esta problemática não é tão específica de um ?grupo? como possa parecer, isto é, não é uma matéria que diga respeito apenas aos/às homossexuais por causa da sua suposta condição: imaginemos que pessoas de sexo diferente estariam impedidas de se unir através de casamento. À partida, parece-nos difícil conceber um cenário assim, justamente porque grande parte das instituições sociais ? como o casamento ? encontram-se de tal modo instituídas, e por isso mesmo naturalizadas, segundo uma lógica heterossexual que impede que sobre elas se possa exercer qualquer tipo de questionamento, em temos da equação de uma mudança. Nesta medida, os processos de construção de uma consciência crítica sobre a homossexualidade e sobre a união entre pessoas do mesmo sexo não vão tanto num combate violento às homofobias (ainda que infelizmente continue a ser necessário), mas mais numa ?prevenção? do heterossexismo presente na nossa vida de todos os dias. É evidente que o termo ?prevenção?, aqui evocado, não se prende com a prescrição de receitas sobre ?como poderemos deixar de sermos heterossexuais??, em favor de um ideal de amor homossexual. Em contrapartida, um olhar crítico em torno dos heterossexismos (porque também interfere nas atitudes e no comportamento dos/as próprios/as homossexuais) permite que se desoculte, nos passos, nas linguagens, nos discursos produzidos à volta de uma mesa de café, as próprias sombras com e sobre as quais ele se construiu ao longo da História, como também as estratégias de inclusão e de exclusão a que recorre, em nome de um bem comum a ser respeitado por todos/as.
O medo que é sentido face à eventual destruição do casamento, tal como é concebido de acordo com uma lógica heterossexista, deixa revelar, mais uma vez, a visão estigmatizada da homossexualidade e seus papéis possíveis na construção das sociedades, mas visão essa que funciona como um mecanismo de confirmação, verificação e ainda validação social e política da própria identidade heterossexual em risco de flutuação, fundamentalmente a partir da segunda metade do séc. XX. Os processos de construção da homossexualidade e suas diferentes identidades (e não de ?inclinação sexual?, como em alguns artigos de opinião pública se escreve) envolvem, necessariamente, negociações várias com instituições, papéis sociais e de género heterossexuais, porque, entre outras razões, continua ainda a não ser legal ser-se homossexual casado/a ? e não se estando abarcado pela Lei, seja da ordem do jurídico-politico ou da religião, fica-se abarcado, como sabemos, pela amoralidade. O casamento entendido como uma espécie de ?dever?, na exclusividade da condição da geração de futuros membros da sociedade, confunde-se antes com uma ideia tacanha de ?bom senso? ? e recorde-se que para Descartes este seria a coisa do mundo melhor partilhada ? como que representando o modo mais eficaz de nos libertar de toda a irracionalidade e de toda a amoralidade. Actualmente, o que parecerá importante ser perguntado é: até que ponto estaremos dispostos a persistir na reprodução de modelos de bom senso (designadamente através do discurso legal e político), a partir dos quais formulamos representações artificiais de comportamento? Será o casamento hoje, entre pessoas de sexo diferente, um conceito honesto e verdadeiro?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Paulo Nogueira
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
Paulo Nogueira
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

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