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"É fundamental planear a longo prazo a formação de professores"

Eduardo Anselmo de Castro, em entrevista à PÁGINA, afirma a necessidade de planeamento prospectivo para evitar ruptura do sistema educativo

Eduardo Anselmo de Castro é licenciado em Engenharia Civil pela Universidade de Coimbra (1980), Mestre em Geografia Humana, Planeamento Regional e Local pela Universidade de Lisboa (1987) e Doutorado em Ciências Aplicadas ao Ambiente pela Universidade de Aveiro (1995). Actualmente, é Professor Associado na Secção Autónoma de Ciências Sociais, Jurídicas e Políticas da Universidade de Aveiro. Desde 1992, participa e coordena diversos projectos de investigação nacionais e europeus nas áreas do desenvolvimento regional, das políticas de inovação, da análise do impacto sócio-económico das Tecnologias de Informação e Comunicação e da análise técnico-económica das telecomunicações. É responsável pela direcção do Observatório de Apoio ao Desenvolvimento Estratégico da Universidade de Aveiro, desde a sua criação em Março de 2002.
Foi encarregado em Março de 2004, pela Reitoria da Universidade de Aveiro, de preparar a criação do GIADE - Gabinete Inter-Universitário de Apoio ao Desenvolvimento Estratégico, que integra o Observatório da Universidade de Aveiro e unidades equivalentes da Universidade de Coimbra e da Universidade da Beira Interior. É autor e co-autor de mais de cinquenta artigos apresentados em conferências nacionais e internacionais ou publicados em revistas científicas e livros.
Nesta entrevista, abordamos as conclusões de um estudo conduzido por Eduardo Anselmo Castro e pela sua equipa, constituída pelos investigadores Helena Correia Pinto, Álvaro Castro Jardim e Pedro Mariano Pego, investigadores da Universidade de Aveiro, através do qual se faz uma análise prospectiva, até 2020, do mercado de trabalho na área da docência do ensino pré-primário, básico e secundário em Portugal. Os cenários não são animadores: o mais realista aponta para um excedente de quase cem mil professores e o mais pessimista para 150 mil num prazo de apenas quinze anos.

Que motivos levam, na sua opinião, a que haja hoje uma tão elevada taxa de desemprego na classe docente?

Penso que o motivo para o elevado índice de desemprego actualmente verificado na classe docente parte do excedente de professores presentes no sistema.
A partir da década de 70, o número de alunos inscritos no sistema educativo cresceu muito, por força da implementação da escolaridade mínima obrigatória, e o número de professores teve, naturalmente, de acompanhar esse crescimento. A procura gerou oferta e, nesse processo, foram abertos inúmeros cursos de formação de professores, nomeadamente no âmbito do ensino superior particular, sem que houvesse qualquer tipo de controlo do número de estudantes que neles se inscreviam.
Essa relação foi tendo algum equilíbrio enquanto o número de alunos foi crescendo. Porém, quando ele começou a estabilizar e mesmo a decrescer, a oferta de formação de professores manteve-se, gerando uma situação de ruptura em relação às necessidades efectivas do sistema educativo.

Acha que se podia ter acautelado esta situação?

Sim, fazendo previsões sobre as necessidades e agindo em função delas. A actual disfunção existente entre a procura e oferta de professores foi resultado da falta de planeamento prospectivo ao longo dos anos no sistema educativo, sendo necessário actuar para que esse rácio se volte a ajustar.
O actual sistema deixou de se auto-regular e gerou um completo descontrolo, pelo que é fundamental planear a longo prazo a formação de recursos humanos na área da docência.

Muita gente começa a questionar hoje se valerá a pena seguir a via de ensino?

Sim, neste momento dir-se-ia que há quase uma reacção de pânico, fazendo com que haja cada vez menos candidatos aos cursos de formação de professores. O que, num futuro próximo, poderá provocar o problema oposto, isto é, uma descompensação do número de professores em relação às necessidades do sistema.
Os professores que estão agora a entrar na reforma são relativamente poucos. É uma pirâmide que tem um topo muito estreito, ou seja, saem poucos e entram muitos. Mas quando chegar a altura destes últimos saírem, fá-lo-ão em grande quantidade e nessa altura será preciso garantir um igual número de candidatos para provir as necessidades. Mas aí podemos não estar preparados, porque não houve um planeamento eficaz.
Depois, é preciso que, nesse cenário, as próprias escolas estejam preparadas, porque não basta elas abrirem as portas, será necessário existirem professores e estruturas capazes de dar resposta a um novo aumento da procura.

O trabalho que desenvolveu pretende exactamente trazer a público alguns dados que demonstram aquilo que acabou de defender. Em que contexto surge este modelo de avaliação prospectiva da evolução do sistema educativo relativamente à procura e oferta de professores?

Este trabalho foi realizado em sequência de um estudo de viabilidade para a instalação de um pólo da Universidade de Aveiro (UA) na cidade de Viseu. Na altura, o reitor da UA, Júlio Pedrosa, nomeou uma equipa para efectuar esse estudo, centrado na procura de cursos e no número de alunos.
Para fazer esta previsão tivemos de realizar projecções demográficas por grupos etários ? porque o INE, apesar de as possuir, não as divulga ? já que é a única forma de fazer este tipo de conjectura.
Mais tarde, o Instituto Politécnico de Leiria pediu-nos para efectuarmos um modelo de procura e de colocação da formação de professores para o ensino básico e secundário porque queria, já na altura, antecipar o problema que se vive actualmente, e estimular, dessa forma, a procura em outras áreas.
Mais recentemente, a UA mostrou-se interessada em aplicar o modelo que desenvolvemos à própria universidade. Utilizando parte da informação que já havia sido recolhida e posteriormente corrigida, conseguimos, passados vários meses, fazer um estudo extremamente detalhado das necessidades da formação de professores para o futuro nas várias áreas de formação.
Este estudo tem duas componentes: uma é o número de alunos previsíveis para os vários níveis do ensino básico e secundário e, no contexto de cada nível de ensino, para as diferentes áreas de formação.

Qual foi a metodologia seguida?

Começámos por fazer previsões relativamente às necessidades do número de professores tendo em conta parâmetros como as previsões demográficas da população, o número de alunos, as taxas de escolaridade e a dimensão média das turmas existentes por nível de ensino ou a possibilidade da extensão do ensino obrigatório para doze anos a partir de 2010.
Depois cruzamos estes dados com o número de professores actualmente existente por grupos etários e por grupos disciplinares - baseados na informação disponibilizada pelo Ministério da Educação - o número previsto de aposentações, a variação de cargas horárias, as horas destinadas a cargos pedagógicos, o número de professores previstos nos cursos de formação de professores.
Para avaliar o impacto de medidas alternativas de política educativa, foram considerados três parâmetros variáveis (dimensão da turma, idade de reforma e formação de professores) que combinados entre si, ajudaram à definição de dez cenários.  
Desta forma, pode saber-se, em qualquer ano lectivo, quantos professores existem no sistema, quantos são realmente precisos e verificar a diferença. Além disso, o estudo quantifica igualmente o número de professores necessários por áreas disciplinares, o que permite saber qual irá ser o excedente em matemática, em química, em francês, em desenho, o que se quiser.

Cenários pessimistas

No estudo que elaborou traça dez cenários possíveis até 2020...

São combinações de vários cenários. E o resultado dramático é que, mesmo nos cenários onde se coloca a hipótese de se fecharem todos os cursos de formação de professores, em todos eles se verifica um excedente de professores relativamente às necessidades do sistema.
Se tudo continuar na mesma, isto é, com o mesmo número de colocados em licenciaturas de ensino relativamente a 2000/ 2001 e com a idade de reforma prolongada até aos 65 anos, a previsão é que haja um excedente de cerca de 150 mil professores em 2020 nos vários níveis de ensino.

Mas coloca a hipótese de um outro cenário em que esse excedente é calculado em apenas cerca de 180 docentes. Como se chega a este resultado?

No caso de um cenário extremo, que colocasse numerus clausus zero desde o ano passado (o que, logicamente, já não se verificará), antecipasse as reformas em cinco anos (o que, como vimos recentemente, se verifica o inverso) e reduzisse a dimensão média das turmas em todos os níveis de ensino, conseguir-se-ia diminuir o excedente de quase 30 mil professores verificado em 2005 para menos de duas centenas em 2020. Este seria o único cenário que faria desaparecer este problema.

Deve reconhecer, no entanto, que esse cenário envolve decisões políticas que dificilmente serão postas em prática. E por isso admite que o modelo aponta para outros cenários intermédios, que constituem alternativas mais exequíveis?

Claro, porque este cenário idealista seria catastrófico?
A técnica dos cenários serve não tanto para fazer previsões estatísticas, mas para balizar essas previsões, pondo uma espécie de fronteira relativamente ao ?sítio? possível das previsões. Os 150 mil professores de que falávamos há pouco não é uma previsão, é um cenário. E quando se verifica, como é o caso, que quaisquer dos sítios situados nessa fronteira apontam para um excedente, é preciso ter cuidado porque, independentemente das previsões, ele irá ocorrer. É esse tipo de chamada de atenção que pretendemos fazer.

Qual é o cenário que considera ser mais provável de evoluir?

À partida será o quarto cenário apontado no estudo, em que apenas as universidades públicas formam docentes e em que a idade de reforma dos professores seja de 65 anos, o que equivale, segundo o nosso cálculo, a cerca de 95 mil professores excedentes no sistema em 2020.
Este cenário não anda longe da verdade na medida em que a idade de reforma na função pública foi prolongada e em que as universidades privadas formam cada vez menos professores, à semelhança das públicas, aliás, cujos cursos de formação de professores viram reduzidos os seus numerus clausus em 20% no ano lectivo de 2004/2005.

Na medida em que os contextos políticos e sociais mudam, não teme que os parâmetros utilizados para este tipo de planeamento possam, eventualmente, ser falíveis?

Há aspectos que podem ser falíveis, mas outros não. Não é falível, por exemplo, o facto de haver professores que estão no sistema a caminho da reforma. Porque eles envelhecem, e para isso não há remédio. E também não é falível o número de alunos estimados para os próximos anos. Mesmo admitindo que o número de professores que entram no sistema seja altamente variável, foi nesse sentido que foram traçados dez diferentes cenários.

Governo tem conhecimento mas não actua

Pelo que sei, este tipo de planeamento prospectivo tem tradição noutros países europeus. Tem funcionado?

Sei que este tipo de planeamento prospectivo existe em outros países porque analisei vários modelos aplicados em diferentes contextos. No entanto, não estou a par sobre a forma como os respectivos governos actuaram em termos políticos. Apesar de tudo, julgo que é difícil fazer uma comparação directa com o caso português.
Em primeiro lugar porque, neste momento, o que se passa na maior parte dos países europeus é o contrário do que se verifica aqui, isto é, faltam professores. E, tal como já referi, essa hipótese não se pode excluir para o caso português. Porque se é possível, por efeito de planeamento, redimensionar a oferta, não é possível obrigar as pessoas a procurarem formação nesta área.
Por outro lado, na maioria dos países europeus verificou-se uma mudança mais gradual, enquanto que em Portugal estes fenómenos tendem a funcionar por quedas bruscas, e isso é outro problema.
As necessidades conjunturais do sistema são fáceis de calcular em qualquer parte do mundo, exceptuando talvez casos em que haja fortes taxas de emigração ou se verifiquem grandes movimentos populacionais.

Refere até no seu trabalho que na área da educação o planeamento funciona porque as suas principais variáveis, que são os alunos e os professores, são respectivamente expectáveis e reguláveis?

Exactamente. Agora, é preciso que haja vontade política para tirar ilações deste tipo de trabalhos. Aliás, este estudo não foi muito divulgado. O Ministério da Educação conhece-o e só não o divulgou porque sabe que ele é explosivo. O próprio Conselho de Reitores, a quem ele também foi apresentado, teve receio de o divulgar.

Porque razão pensa que ele foi ignorado?

Não sei. Mas a mensagem que eu quero fazer passar não é de catástrofe. O que eu quero sublinhar é a necessidade de existir algum tipo de planeamento, seja por parte do ministério seja por parte de quem coordena a formação, mas de alguém que o faça. Mas em Portugal parece que ainda não acordamos para esta questão.
O Ministério da Educação tem alguns estudos respeitantes às necessidades do sistema educativo, mas não cruza os dados respeitantes à formação de professores, porque isso está nas mãos do Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Ou seja, não trocam informação. Os estudos que existem estão, portanto, desajustados. Apesar disso, o governo afirmava que não havia problema nenhum porque iriam continuar a ser precisos muitos professores, sem entrar em linha de conta quantos é que se estavam a formar.

Quando é que este estudo foi apresentado ao ME e ao CRUP?

Antes de concluirmos este estudo, tivemos uma proposta por parte do Ministério da Ciência e do Ensino Superior ? na altura tutelado pelo ministro Pedro Lynce ? para concebermos um modelo prospectivo similar. O encontro teve lugar, houve a intenção de levar o projecto adiante, mas o facto é que ele acabou por ficar na gaveta. Quanto ao estudo realizado por mim e pela minha equipa, sei que ele chegou a ser entregue a ambos os ministérios e que os respectivos gabinetes têm conhecimento das suas conclusões.

Em termos pessoais, concorda que o actual excedente do contingente de professores poderia ser redireccionado para outras áreas de docência ou preencher lacunas existentes no sistema educativo?

Não penso que essa seja a melhor solução, porque estas pessoas foram formadas para uma determinada área de docência e desse modo vão realizar uma actividade para a qual não estão vocacionadas. Já por si isso significa um desperdício de recursos. Resolve o problema do desemprego docente (e do problema pessoal dessas pessoas, que não é pequeno), mas em termos da economia do país continua a haver um desfasamento que é preciso encarar de frente.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Eduardo Anselmo de Castro
Professor Associado na Secção Autónoma de Ciências Sociais
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Eduardo Anselmo de Castro
Professor Associado na Secção Autónoma de Ciências Sociais
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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