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Atenção! Crianças escutando no banco traseiro.

?Por que os países ricos não querem mais ajudar os palestinos??; ?O Lula é um bom presidente para o Brasil??; ?Acho que o presidente Bush tem cometido muitos erros...?; ?Fico triste em pensar nas pessoas do Paquistão e de New Orleans. Os homens deviam pensar mais no futuro de todos?; ?Como as mães podem jogar seus filhos fora??(1). Ultimamente tenho sido interpelada por falas deste tipo em diferentes lugares e situações e penso que qualquer pessoa as imaginaria sendo enunciadas por adolescentes ou, até mesmo, por adultos. Minha inquietação, como educadora e jornalista, entretanto, refere-se ao facto de que elas têm sido ditas por crianças, de várias nacionalidades, geralmente com idades que variam entre 4 e 9 anos, em diferentes países e contextos.
Ao indagar qual a fonte de informação destas crianças sobre estes temas, as mesmas, quase invariavelmente, têm respondido que escutam no rádio. Sua experiência de escuta radiofônica se dá durante os deslocamentos de carro com os pais, pois com a intensificação da proteção à vida nas sociedades governamentalizadas contemporâneas, as crianças têm estado cada vez mais presas aos acentos traseiros dos automóveis familiares e, aí, disponíveis como audiência. A maioria delas identifica, inclusive, a emissora e o horário em que ouviram tal ou qual informação. Conhecem ?de ouvido? os locutores, os produtos ofertados na comunicação publicitária, os jingles, as músicas mais ?tocadas?, etc.
Diante destas informações que invadem meu cotidiano tenho refletido sobre o rádio como um dispositivo midiático de caráter pedagógico que integra a cultura da mídia e diariamente fornece uma espécie de ?receituário? de condutas e um ?catálogo? de identidades (Quadros, 2005). Através das narrativas informativas ? mais comumente identificadas como as notícias, as reportagens, a previsão do tempo, a ?hora certa?, os spots e os jingles −, bem como das músicas que veicula, o rádio coloca em circulação discursos e representações.
O leitor/a poderá se perguntar: que relação tem estes aspectos com a cultura e com o cotidiano das crianças/estudantes? Minha resposta tem a ver com os questionamentos propostos por Costa (2005) sobre quem são os estudantes que estão chegando às nossas escolas, o que eles querem e o que vamos fazer com eles nas nossas salas de aula no sentido de considerar como elemento importante do processo educativo aquilo que trazem para a escola. O rádio tem sido considerado uma mídia que apóia as formas de mediação proporcionadas pela televisão, pela internet e pela mídia impressa. Contudo, esta observação inicial parece recolocar o rádio como objeto a ser considerado pedagogicamente pela escola, no âmbito da cultura.
Sei que cada mídia lança mão de seus atributos constitutivos a fim de alcançar o ?endereço? desejado, mesmo que sem garantias absolutas, já que a seleção dos elementos que vão compor a identidade de cada comunidade imaginada de ouvintes ainda assim será mediada por culturas particulares. Nesse sentido, o rádio está colocando em andamento pedagogias e currículos culturais dentro e fora das instituições educacionais. Através de suas narrativas, estruturadas de acordo com as forças que regem a dinâmica comercial, política e cultural predominante no mundo contemporâneo, acaba por dizer a cada ouvinte sobre o que pensar e o que pensar sobre.
Tenho buscado localizar estudos que estejam pensando esta relação entre a criança e o rádio e não os tenho encontrado. As grandes corporações, todavia, já perceberam o seu potencial para a construção de uma determinada infância. A Disney Co. está trabalhando este aspecto desde o final dos anos 1990 e mantém, atualmente, uma emissora radiofônica via satélite com programação endereçada exclusivamente aos consumidores infantis. Não se trata de reproduzir o áudio de suas produções cinematográficas, mas de desenhar uma programação que dê conta deste novo consumidor de uma velha mídia. E nós educadores, o que estamos pensando sobre isto? É necessário ter atenção: há crianças escutando no banco traseiro!

Nota:
1) Esta fala se refere a um acontecimento recente no Brasil, quando uma mãe colocou seu filho dentro de um saco de lixo plástico e o jogou em um rio. A criança foi encontrada, passa bem e a mãe foi detida pelas autoridades para responder a processo.

Referências

  • COSTA, Marisa Vorraber. Quem são, que querem, que fazer com eles? Eis que chegam às nossas escolas as crianças e jovens do século XXI. In: MOREIRA, Antonio Flávio; GARCIA, Regina Leite; ALVES, Maria Palmira (Orgs.). Cultura e política de currículo. Araraquara: Junqueira&Marin, 2006. (no prelo).
  • QUADROS, Marta Campos de. Contando histórias, Governando a vida: pedagogias do rádio informativo no cotidiano contemporâneo. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil. Canoas, ULBRA: 2005.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Marta Campos de Quadros
Mestre em Educação pela Ulbra, Especialista em Teoria do Jornalismo e Comunicação de Massa, e Docente do Curso de Comunicação Social da Universidade de Passo Fundo/RS.
Marta Campos de Quadros
Mestre em Educação pela Ulbra, Especialista em Teoria do Jornalismo e Comunicação de Massa, e Docente do Curso de Comunicação Social da Universidade de Passo Fundo/RS.

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