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"Um desafio extraordinário"

Crónica de uma professora argentina no Afeganistão

Griselda Amuchastegui é professora do Instituto de Professores de Educação Física em Cordoba, na Argentina, e trabalha actualmente no Afeganistão como especialista em desenvolvimento curricular ao serviço da ?War Child?, uma Organização Não Governamental de âmbito internacional que desenvolve projectos educativos em países que atravessam contextos de guerra. A sua actual missão passa por ajudar o ministério da educação daquele país a estruturar um currículo nacional e um plano de formação de professores.  ?Um desafio profissional extraordinário?, como a própria o descreve no face a face  que se segue.

O que a levou a ir trabalhar para o Afeganistão?

Iniciei este trabalho no Afeganistão através da sugestão de uma amiga, que me aconselhou a ver o sítio de Internet de uma Organização Não Governamental (ONG) chamada ?War Child?, que necessitava de uma técnica capacitada para orientar um projecto de desenvolvimento curricular, de formação de professores e de promoção comunitária na área da educação física naquele país.
Considero que este tipo de trabalho é indispensável em países que atravessam contextos de guerra e de crise humanitária, já que, tendo em conta que existem necessidades básicas imediatas para suprir, como a alimentação, a saúde e a habitação, a preocupação pelo bem-estar psicossocial é habitualmente colocada em segundo plano.

De que forma encarou esta tarefa? Como um desafio?

Na minha opinião, este é o tipo de desafio que qualquer profissional pode ambicionar. Um desafio tanto maior se tivermos em conta a realidade social daquele país? Admito que talvez exija um pouco de coragem, mas o seu alcance social traz-me uma enorme satisfação pessoal. Ainda mais tendo o privilégio de trabalhar com uma ONG que eu considero democrática, transparente e livre. O ano passado, trabalhando em duas cidades ? Cabul e Herat ?, alcançámos mais de 250 mil crianças. A situação delas não se alterou significativamente, mas pelo menos conseguimos trazer alguma mudança ao seu quotidiano.

Como é trabalhar num país devastado pela guerra?

É igual a trabalhar em qualquer outro lado do mundo. Os desafios são diferentes, mas, à semelhança de qualquer outro país, existe a preocupação de fazer um trabalho válido e de trabalhar com a população de forma a não atentar contra as suas crenças e valores.

Sei que já trabalhou também na Palestina e em El Salvador. É muito diferente do Afeganistão?

São realidades contextuais diferentes. Em termos profissionais não foi muito diferente, porque em todos os locais encontrei gente boa e com vontade de trabalhar. Em termos pessoais sim, porque na Faixa de Gaza e em El Salvador tinha uma maior liberdade de movimentos e não era obrigada a usar o Chador, o tradicional tecido que cobre a face e a cabeça das mulheres. Viver no Afeganistão hoje, como mulher e profissional, coloca sem dúvida algumas dificuldades.

Usa roupa adequada aos costumes locais?

Sim. Uso o chador e uma roupa que me cubra completamente até aos pés, para me deslocar de casa ao escritório, quando estou em lugares públicos, etc. Quando entro em casa, deixo de ser afegã?

Como faz para dialogar com a população local?

Estou sempre acompanhada de um tradutor. Ele é a minha voz, os meus ouvidos e a minha vista. É através dele que me expresso e compreendo a realidade, o que por vezes se torna complicado. O facto de não falar os idiomas locais, o dhari e o pashtun, limita-me muito a liberdade de movimentos.

O seu trabalho, segundo sei, consiste em elaborar um currículo a nível nacional na área da educação física. Que dificuldades encontra nesta tarefa num país onde o corpo é encarado de uma forma diferente relativamente ao ocidente?

Eu penso que essa noção é, de certo modo, um mito. A relação com o corpo encontra obstáculos um pouco por todo o mundo. Se antes ele estava escondido, agora passou a ser adorado, o que leva, de igual modo, à existência de um problema. Neste sentido, não considero a dificuldade de relação com o corpo como um problema afegão, mas humano, que se manifesta de modo diferente em diferentes locais. No Afeganistão ele tem um modo próprio de se manifestar. Nessa medida, é um desafio profissional extraordinário.

Colocando a questão de outro modo: que tipo de limitações práticas tem encontrado na delineação desse currículo?

Eu e a equipa com quem trabalho, que inclui elementos do ministério da educação afegão, estamos a procurar elaborar um currículo para o ensino básico baseado não só em práticas necessárias, mas sobretudo em práticas possíveis. Práticas que possam dar oportunidade às crianças de conhecer o seu corpo e, dessa forma, conhecerem-se melhor a si próprias, nunca esquecendo que a educação física é uma experiência partilhada socialmente.
O Afeganistão é um país socialmente muito complexo, onde existem grupos sociais com tradições e perspectivas muito diferentes. Um currículo para a escola formal tem de ser pensado tendo em conta essa diversidade. Se pomos ênfase em alguma prática que algum dos grupos questione, estamos a limitar a prática desse grupo de crianças.
Neste sentido, estabelecemos práticas baseadas em jogos tradicionais, em jogos de movimento e de índole desportiva, excluindo outras, como a dança e a expressão corporal, que podem ser conflituais do ponto de vista cultural. Práticas possíveis para a actual realidade social do Afeganistão, com a esperança ? (?In sha Allah?, como dizem os muçulmanos) ? que daqui a alguns anos haja a possibilidade de alargar esse espectro.

Acha que, no contexto social em que trabalha, a educação física poderá ajudar a atenuar as diferenças entre os géneros?

Sim, penso que poderá ajudar a desempenhar um papel central. No Afeganistão as escolas são divididas entre rapazes e raparigas, e as poucas escolas de ensino misto existentes destinam-se apenas às crianças pequenas. A educação física pode jogar um papel importante na medida em que tentamos que as crianças aprendam a conhecer as suas capacidades. Desta forma, as raparigas têm uma oportunidade de reconhecer-se nas suas possibilidades motrizes, pessoais e sociais, num espaço de construção do respeito e do sentido comunitário, através do qual poderão comparar, ou dialogar, com outros aspectos da vida.

Tendo em conta as limitações estruturais do país, como tem decorrido a formação de professores?

De uma forma um tanto ou quanto limitada, porque após tantos anos de guerra e de muitas escolas de mulheres terem encerrado a formação de professores restringiu-se de uma forma acentuada. O número de crianças com necessidades educativas, em particular as raparigas, é tão grande que as escolas apelaram a todos quantos tinham algo tipo de conhecimento para dar aulas.
Actualmente, o sector educativo passa por uma profunda reestruturação, mas a formação em educação física continua a ser secundarizada em relação a outras áreas do saber. Embora eu pense que este não seja um problema exclusivo do Afeganistão?
Para suprir as carências mais imediatas, iniciamos este programa com um projecto-piloto em Herat e, no ano passado, ele teve continuidade em Cabul, onde formamos professores para todas as escolas do 2º ciclo. Como não havia um currículo estruturado, decidimos realizar a formação a partir de linhas orientadoras e dos problemas levantados pelos próprios professores.

Estão, portanto, a criar as estruturas para que no futuro sejam os próprios professores afegãos a dar formação?

Sim, no ano passado realizámos uma série de mestrados através dos quais foi possível formar pessoal do ministério da educação, e este grupo já formou professores em Herat e Cabul. Este ano vamos trabalhar com a Fundação Aga Khan num projecto com cerca de 120 escolas rurais em três províncias diferentes. Apesar das limitações, é muito importante trabalhar com as estruturas que o país já possui, porque de contrário o nosso trabalho seria pouco sustentável a longo prazo.

Está a pensar em prolongar a sua estadia? 

Estou no Afeganistão há cerca de um ano e irei continuar até Junho. Encanta-me o trabalho que estou a desenvolver e a amizade que travei com os colegas afegãos e não afegãos, mas viver no Afeganistão como mulher é difícil e não acredito que consiga prolongar a minha estadia por mais tempo. Existem muitas limitações e aspectos da vida quotidiana a que temos de renunciar, sobretudo devido às barreiras culturais. Depois, no meu trabalho não posso olhar apenas para mim em termos pessoais, porque muitas vezes se transforma numa questão institucional, na medida em que represento uma ONG.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Griselda Amuchastegui
Professora do Instituto de Professores de Educação Física em Cordoba, na Argentina
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Griselda Amuchastegui
Professora do Instituto de Professores de Educação Física em Cordoba, na Argentina
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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