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Carta a um professor só

Resposta ao artigo ?Sou um professor só?, de Daniel Sampaio, na ?XIS? de 2 de Dezembro de 2005

Colega:
O que mais me admirou na tua carta foi dizeres que fizeste greve ?apenas para não dar nas vistas??ora porventura não és responsável pelos teus actos e receias dar nas vistas, isto é, receias críticas dos colegas grevistas? Será que te preocupas em não dar nas vistas com o que vestes, na ida à igreja ao domingo, ou na ida ao jogo da bola?
É verdade que a confusão é grande; por vezes, é necessário ?tirar a senha? (se a houvesse?) para aceder ao único computador da sala dos professores, ou ao único disponível na salinha dos directores de turma; ou há que procurar um local sossegado para evitar os ruídos e trabalhar em sossego, agora que a tutela nos obriga a estar mais horas na escola. Algum colega transporta o seu PC para a escola, procura 1 m2 de espaço e descanso para tratar dos diversos aspectos da actividade de professor (como escrever esta carta, p. ex., que faço na salinha dos jovens estagiários ? desde este ano eles trabalham à borla, como sabes ? que esta manhã não estão cá)? Conheces alguma escola em que o Conselho Executivo tenha ponderado as capacidades de acolhimento de tantos professores coincidentes sem aulas numa sala colectiva e, face à incapacidade em oferecer espaços mínimos aceitáveis, tenha recusado cumprir o que manda a tutela? Eu não. Haverá quem acredite na ?história da Carochinha? escrita entre a FNE e o ministério ? aquela história dos kits informáticos e dos gabinetes de docentes ?, redigida 2 dias antes da greve de 18 de Novembro?
A tua carta exala um odor a missão; alguém te pede para seres missionário, estares obcecado por estar com alunos? Ontem, deveria eu substituir um colega numa turma do 5º ano, mas os 25 miúdos não apareceram, antes estiveram no degradado (e desactivado) campo de jogos da escola. Semanas atrás, também substituí um professor do 5º ano; tive a chance em ter a minha sala de EV livre, e motivei os alunos para elaborar o nome nalgum estilo de ?grafitti? (tema que trato nas minhas aulas durante um mês); fui bem sucedido, e a turma desejou que o professor faltoso permanecesse assim para a semana, só que isso não voltou a suceder. Poderia acontecer não ter a minha sala disponível, e o caso seria diferente. Alguém cativa uma turma do ensino básico com o quadro negro à frente? E se a substituição calha perto da hora do almoço ou em final da tarde, a turma não responde da mesma maneira.
Ouve-se que um dia daremos aulas pontuais no primeiro ciclo. Essas escolas não são bem aqui ao lado? Ou achas que, sendo bom samaritano e pau para toda a obra, tratarás do teu transporte e regresso à escola-base? Repeti este ano um projecto de dois clubes itinerantes ? tomo a liberdade em to enviar em anexo -, indo eu às várias escolas do agrupamento pelos meus próprios meios, sem cobrar nada a ninguém. O ano passado, nenhuma escola me requisitou; este ano, já as aulas tinham começado, e a tutela, no conforto dos gabinetes aí na capital, emitiu um despacho, não sendo admissível haver interrupção de actividades lectivas. O Conselho Pedagógico (onde tenho assento) considerou que a minha eventual ida às escolas seria uma interrupção, logo eliminando o projecto. No ano anterior, estava em vigor tal plano, mas nenhuma escola requereu os meus préstimos. Dá que pensar!
?As coisas precisam de ser mais bem explicadas?, dizes. Pelos ?grandes dirigentes e educadores? do ministério, claro! Não achas que temos as costas largas para os problemas da educação? Alguém aproveita para nos chamar ociosos e pouco produtivos, o que cai quase sempre bem na opinião pública, desejando os pais verem-se livres dos filhos entre o pequeno-almoço e o jantar. Explicaram-te por que é que a subida nas carreiras está bloqueada, e por que é que o tempo de serviço entre Setembro 2005 a Janeiro 2007 é inútil para a contagem? Claro, o país está falido, mas a desculpa é a revisão da carreira ? a palavra ?mérito? soa muito bem, mas depende da turma e da escola: um mesmo professor tem problemas acrescidos se encontra alunos irresponsáveis e instáveis, numa escola de zona crítica. E quem avalia, o Conselho Executivo? É grande o perigo dos amigos e não amigos, vulgo compadrio.
Escreveu a ministra no ?Público? do dia 16 (salvo erro) de Novembro que 45% dos professores ganham entre 2000 e 2800 ¤ mensais?Esqueceu-se de dizer que é ?ilíquidos?, o que dá, no escalão do topo, quase 2000 ¤, para a minoria aí posicionada. E o que dizer da divulgação pública do relatório de faltas dos docentes, divulgação essa no dia 18 de Novembro, dia da greve dos docentes? Estão aí consideradas as centenas de horas não leccionadas devido à grande desordem na colocação dos docentes em Setembro de 2004, desordem essa da única responsabilidade do Ministério; considera-se, ainda, as faltas por parto, atendimento aos filhos ? como sabes, temos uns 70% de mulheres como colegas -, os 8 dias/ano para atender congressos e palestras (de outros, que as nossas não podem ser assim justificadas!). Como os números têm um entendimento subjectivo! Mas tal relatório, caído nesse dia 18, não passa de ?terrorismo? de baixa qualidade, ainda por cima encabeçado por Valter Lemos, o tal que perdeu o cargo numa câmara municipal por faltas injustificadas?
Deixa-me recordar-te o Despacho 17386, Cap. 2º, ponto 7 (podes lê-lo no DR 155, de 12 de Agosto, pág. 11523): ?A ausência do docente à totalidade ou a parte do tempo útil de uma aula de 90 minutos de duração é, em qualquer dos casos, obrigatoriamente registada como falta a 2 tempos lectivos?. Ora se escrevemos dois sumários, numeramos duas aulas, o aluno pode ter duas faltas, mas uma falta ? ou um simples chegar atrasado ? pelo professor significa ?queimar? 2 tempos. Não te soa a prosa de alguém mauzinho? Não é a bem dos alunos, já que o professor pode estar na escola, mas não pode leccionar e tem de ser substituído.
E lembras-te da entrevista da ministra à TV, aquando da greve aos exames, em Junho último, que disse ir haver processos disciplinares aos faltosos? Ainda estou à espera?mas soou muito mal, para não dizer pior.
Posso orgulhar-me duma turma lamentar ter feriado comigo no dia 1 de Novembro, e de receber alguns voluntários ? que não são meus alunos ? em aulas de final do dia. É verdade que a minha aula proporciona ? faço por isso ? uma diversificada amostra em torno do papel e pintura. O aspecto de atelier é maior nestes dias de preparação do cenário da festa de Natal: há que gerir os alunos que desenham a matriz das estrelas, aqueles que as cortam, aqueles que marcam as mãos de tinta nas folhas de papel cenário, os que marcam a sola dos sapatos, os que lambuzam de terra e cola a ?árvore? de esferovite, os que recortam as centenas de fotos de todos os alunos da escola que vão ser as folhas da árvore,? No 9º ano, passei da perspectiva exacta de objectos para desenhos de cariz surrealista ou de decoração de interiores, com agradável sucesso. Ando numa lufa-lufa na sala, pois grande parte dos alunos trabalha com interesse. Não há dias em que uma hora é mais que isso? Pelas boas razões, e pelas más: sim, há alunos mal-educados e desinteressados que, sendo poucos e contáveis, nos dão cabo da aula e da paciência, gastando cordas vocais e tempo. Pode-se considerar uma hora de aulas igual a uma hora na fábrica, no estaleiro, ao balcão, no escritório? Mas há quem queira equivaler actividades diferentes, e misturar mercado e rentabilidade com pedagogia.
Também me orgulho de nunca ter frequentado ?acções de formação? ? tratei de obter a licenciatura em horário pós-laboral, e de realizar um mestrado (pagando as respectivas propinas) na minha área. O conhecimento é um desporto radical! E divulgá-lo um dos prazeres do investigador.
Para o ME, não vale patavina um professor ter livros publicados na sua área, ou artigos publicados fora de Portugal, a enumerar no ?relatório crítico?. Recordas-te duma ministra do governo Santana Lopes querer medir/pesar o número de artigos publicados em revistas? Até o ano sabático que recebi não foi contabilizado para créditos (contrariamente ao que está escrito na Lei de Bases)? Acontece que a comissão única que credibiliza acções de formação e diplomas académicos faz um simples ?trabalho de mercearia? que qualquer secretaria escolar faria em pouquíssimo tempo (a Comissão referida, com sede aqui em Braga, demora uns 2 meses?). Até me admiro que a ministra Manuela Ferreira Leite não tenha extinto tal comissão em seu devido tempo.
Sim, pode-se mudar: 12 alunos por turma, escolas com um máximo de 400 alunos. Multimédia, teatro, música em colectivo, recitais de poesia, BDs, viagens de estudo, horta para a aprendizagem e consumo, animais na quinta escolar para estudo e afecto ?in loco?. Utópico? Utópico é pretender que, com as actuais condições escolares, se vai obter um crescente interesse e êxito no conhecimento e, daí decorrente, no progresso de Portugal.
Boa sorte!


  
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Franklim Pereira
Professor, Braga
Franklim Pereira
Professor, Braga

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