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Ensaio de Etnopsicologia da Infância

 A vida e as suas idades / rituais de aceitação.

Para o meu amigo e discípulo Emanuel Gomes Monteiro

Nascemos num dia qualquer. A família exultante brinda pelo novo ser. A criança chora, mama, usa fraldas, gatinha, aprende palavras, ideias, hierarquias e nomes. Dá os primeiros passos, cai e torna a pôr-se de pé. A criança aprende a identificar pessoas, foge de umas, procura outras. Comportamentos que acontecem entre o nascimento e os cinco anos, como dizem os meus santos padroeiros, Melanie Klein e Wilfred Bion. Entre os cristãos temos o ritual do Baptizado, assim como a Circuncisão entre outros povos e etnias. Os vizinhos de rua Cuidam das crianças que andam à solta a brincarem. Todos os seres humanos têm um Entendimento Final do Eu ser Eu e do Existir de todos os outros. Processos e rituais que marcam a aceitação da vida. Em certos lugares, a criança aos três anos vai para o Jardim-de-infância, quer por ritual social como acontece no Ocidente, quer por costume como nos Hapu Maori ou na Baloma Massim na Kiriwina. Na Escola aprendem a letra e o número, o passado e o presente, a disciplina e a lei. Os mais novos, surpresa após surpresa, interagem com simpatia e amabilidade entre eles e com os adultos do seu carinho, ou aos murros, se for o caso, até ao dia da primeira menstruação ou da primeira poluição nocturna ou da primeira masturbação colectiva facto normal quer entre nós, quer como ritual nos Cache Mira, nos Baruya, nos Barasana, ou nas casas de banho das escolas do mundo. Aparece a primeira pessoa da qual se gosta e com a qual queremos esfregar o nosso corpo, dentro de uma emotividade carinhosa e cheia de beijos. Tenho observado estes comportamentos também, entre os Picunche e na minha vizinhança. Como diz Sigmund Freud em 1906, é o ritual da intimidade, o de se esconder dos outros e de organizar o seu próprio mundo. Passamos da puberdade de melaço, ao cortejar juvenil dentro de um grupo de amigos que saem, passeiam, cantam ou estudam juntos, ou são parentes muito chegados. Um dia, escolhe-se a pessoa para acompanhar ao longo da vida e para reproduzir. É com o desenvolvimento da idade, do crescimento das emoções, da definição de carinho ou de raiva, do ciúme ou do cuidado, que se acaba ou não, por se tornar num casal de facto quer pelo casamento religioso, ou pelo matrimónio civil. Existem outros rituais que são, entre nós, o amancebamento e o contrato de núpcias. Rituais estes, que também existem na Índia, na Etiópia, entre Ciganos, ou, ainda, entre filhos de sócios de empresas que desejam acumularem um investimento com uma mais valia. O ritual, para nossa surpresa, é a subordinação do carinho ao lucro e do sorriso de aceitação, pela conveniência de facto. Este ritual faz parentes afins aos não consanguíneos e interdita os seres humanos entre si, como o irmão da mulher e a irmã dela. No entanto, na vida actual, toda a união dura até o divórcio acontecer. Na verdade por relação a este processo apresenta-se como resultado uma colecção de maridos e mulheres e meios-irmãos ao longo da vida. São ocorrências numa Europa, Melanésia, América Latina e, entre outros, também nos Esquimós. Contudo não se deve definir os factos da união anterior com a pessoa que hoje escolhemos, para não matar a nova paixão. O perigo de toda a união é deixar de existir amor e carinho e considerar se só as recriminações. Estes acontecimentos são observados pela criança. Demonstra-se que os mais velhos não se respeitam entre si. O mais novo começa com doenças para chamar a atenção e procurar amor entre os seus adultos: rituais de se estar enfermo, de quedas, e de demonstração de não estar preparado para a cronologia da vida. Porém, enquadra-se o uso da lentidão de um corpo como um processo de demonstração de preguiça. Como diz um amigo meu: ?toca a andar, doa ou não...?. Acontece que um dia os mais novos descobrem que somos humanos, e que pelas nossas vivências devemos desenvolver condutas de adulto maior, de pessoas mais velhas que se confrontam com as suas próprias histórias dentro dos seus universos. Antes de acontecer o rito final, esse entrar no mundo fora da História, esse dia onde apenas fica o nosso nome, na memoria do agregado familiar, que por uma avaliação mais ou menos marcante dos diversos períodos da nossa trajectória de vida, poderá passar ás gerações seguintes, como até ficar na memória social.
A minha frase preferida é: o meu passado é muito longo, o meu futuro fica cada vez mais curto, devo pôr em escrita, tudo o que ainda está guardado na cabeça, antes da memória se apagar. A vida, as idades, os acontecimentos de cada etapa, e as doenças, jamais nos são ensinadas. Aprendemos à medida que aceitamos o nosso próprio envelhecimento, as nossas dúvidas e doenças. Vivemos os lutos dos que, antes de nós, partiram para uma outra História.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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