Os jovens chegam agora de todos os níveis culturais; trazem a força da juventude que choca inevitavelmente com uma cultura que a escola pretende transmitir, francamente distante e por isso completamente desinteressante para a maior parte destes alunos.
1. Entrei na sala de aula mesmo agora. A humidade escorre pelas paredes e faz frio. As carteiras estão umas atrás das outras, como há trinta e cinco anos, quando ali me sentei. Nesse tempo, eu era já um adolescente espontaneamente preocupado com a sua pessoa. Os professores colocavam-se em cima do estrado ? que ainda ali está ? e debitavam, falavam repetindo poucas vezes ou nunca as coisas mais difíceis. Eu tinha um número - era quase sempre o vinte e sete, para colegas e para professores; não tinha vida própria: sentava-me todo o dia, aula após aula, a olhar para as costas de algum companheiro que, por sua vez, olhava para as costas de um outro. Como as grandes flores amarelas, parecíamos estar todos virados para o Sol. O astro-rei eram os docentes que não sabiam nada de nós; éramos impessoas: não tínhamos família nem amigos e problemas muito menos, nomeadamente os que se prendiam com o nosso desenvolvimento sexual. Não comunicávamos. Um teste, um exame e a roda da sorte lá nos premiaria (ou enxotaria para sempre) com um nome agradável ao sistema vigente: fulano de tal a preparar-se para ser DR. Hoje, apesar de muitas outras escolas terem mudado, desemboco de novo nesta sala e sinto tudo tão igual. O que mudou, realmente, para os nossos filhos? E, principalmente, o que há para os filhos de quem nunca andou na escola?
2. Na escola muitas vezes se tentou mudar. Andou-se para a frente e para trás, dependendo, na maior parte das vezes, da vontade política dos governos. Mas, no essencial, a incapacidade de responder aos ?novos utentes? é uma realidade. Deixar de ser uma escola colonizadora é extremamente difícil. Os jovens chegam agora de todos os níveis culturais; trazem a força da juventude que choca inevitavelmente com uma cultura que a escola pretende transmitir, francamente distante e por isso completamente desinteressante para a maior parte destes alunos. Fazer essa ponte entre interesses e culturas implica hoje estratégias bem mais reflectidas, mais difíceis, sem dúvida, mas, sobretudo, mais trabalhadas em equipas de docentes e outros técnicos. A violência gera-se na escola pela falta de interesse, pela incapacidade de motivar os jovens para o futuro que já não tem o mesmo valor semântico por ser cada vez mais imprevisível. Cadeiras partidas, mesas riscadas, paredes estragadas, portas rebentadas, são, afinal, a expressão da desadaptação à escola e à sociedade, denotada em violência. E quanto mais a escola tiver dificuldade em abandonar a sua vertente colonizadora, não assumindo a importância de outras culturas, de outras formas de estar no mundo, ou seja, o direito à diferença, mais veementes serão estes actos de repúdio por parte dos jovens. Os exames, tão defendidos por determinados sectores políticos, o que são senão uma aberração do nosso tempo, que repudiamos há mais de trinta anos? Implicam estratégias tradicionais de leccionação e correspondem a formas de estar na vida conservadoras e desajustadas sobretudo daqueles que estão distanciados desta cultura que se insiste em veicular como única.
3. A juntar a tudo isto, a violência sobre a escola contribui de forma inequívoca para que, cada vez mais, esta situação crísica aumente. A escola ? principalmente a pública ? não é pertença dos professores ou dos funcionários; pertence aos cidadãos. Todos são responsáveis por ela. Perdida, socialmente desadaptada, talvez toxicodependente (antidepressivos, internamentos e outros que tal), ela deve, porém, ser vista como um filho que nunca abandonamos. Não é justo que seja permanentemente acusada e enxovalhada; que seja analisada tantas vezes de forma tão pouco científica por qualquer um: entre os colunistas de jornais prestigiados e as conversas de cabeleireiro (com todo o respeito por este espaço de transmissão comunicativa) parece muitas vezes não haver grande diferença. Melhorar a escola significa contribuir de forma enriquecedora para o bem-estar dos professores em termos pessoais e profissionais, respeitando o seu trabalho, na maior parte das vezes tão digno. Apetrechar as escolas com infraestruturas essenciais, com técnicos, com gestões efectivamente democráticas e mobilizadoras é uma responsabilidade que cabe a todos. Reconhecer que há muita gente nas escolas a trabalhar dignamente (corrijam-se os elementos negativos que há em todas as profissões) é uma obrigação da sociedade portuguesa. E muito mais por quaisquer responsáveis pelo Ministério da Educação.
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