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Conselheiros da desgraça

À meia-noite de 31 de Dezembro, os senhores ?entalados num colarinho branco?, deveriam ter mastigado as passas interiorizando a Região onde vivem, o sentido de família paulatinamente em destruição, a ostentação infeliz e podre, o ridículo da subserviência, as aparências de uma sociedade embonecada mas, por dentro, corroída nos valores (...)

Muito fogo, estalidos de garrafas de champanhe, charutos, abraços, desejos, promessas de solidariedade e muita hipocrisia à mistura. No meio da festa e da corte, lá estiveram, as novas versões do Conselheiro Acácio, personagem do romance O Primo Basílio, de Eça, ?entalados num colarinho branco?,  ?símbolos da vacuidade, do convencionalismo, da respeitabilidade burguesa (...) e do formalismo oficial?. Lá estiveram quase todos, como convém. Aposentados, jovens com bom corpo para trabalhar e produzir e, ainda, muitos ex-qualquer coisa na vida. Três mil euros por mês, oferecidos de mão beijada, certamente pelos serviços prestados à causa, justificam e quase obrigaram a presença. Muitos que, cá fora, ouço-os apontar o dedo acusador ao despesismo do Estado, aos funcionários públicos em geral e aos professores em particular, afinal, acoitam-se, despudoradamente, à mesa do orçamento público. Segundo creio, pelos trabalhos jornalísticos publicados, faltará apenas um para compor-se a história de Ali-babá. Em abstracto, a história dos conselheiros técnicos do Governo Regional, essa espécie de prateleira dourada, provoca-me náusea política. Isto, quando se olha em redor e vêem-se carências até ao céu da boca, pobreza escondida ou disfarçada, a crescente importância das organizações não governamentais e religiosas em peditórios públicos que colmatem a fome e a doença, infâncias tristes e bloqueadoras, miséria humana espelhada na violência doméstica três vezes superior à do país (dá que pensar as múltiplas razões que subjazem), milhares de jovens agarrados à droga da droga e a outras drogas, criminalidade em crescendo, analfabetismo e incultura, escolas com orçamentos limitados, licenciados à procura do primeiro emprego no meio de sete milhares de homens e mulheres desempregados, uma Região afogada em dívidas mas com milhões para distribuir pelas SAD?s do futebol e restante alta competição (9,5 milhões de euros inscritos no Orçamento de 2006) enquanto o desporto educativo escolar soçobra, empresas a olhar para ontem, enfim, quando se olha e, sem miserabilismos, vê-se uma paleta de cores muito cinzenta no horizonte social, os tais conselheiros só o podem ser da desgraça. Mais. Quando se apedreja o notável trabalho pedagógico, de grande entrega pessoal, ao longo de quase quarenta anos, dando sentido de vida às mulheres vítimas de violência e da prostituição, e se ofende de forma baixa, rude e miserável a Ilustre socióloga madeirense Inês Fontinha, recentemente distinguida pelo Presidente da República como ?Mulher do Ano?, apenas porque veio, de Lisboa à Madeira, tocar nas feridas sociais que sangram, é chegada a altura de manifestar indignação. Dispenso, por tudo isto, o envio para a minha residência de uma bandeira da Região comemorativa dos 30 anos de Autonomia. No mesmo dia devolvê-la-ei ao mentor da iniciativa coordenada, segundo li, por um desses conselheiros. Não quero ser cúmplice do desperdício, neste caso, de 46 mil contos de bandeiras da propaganda que trazem no seu miolo, não a Educação que precisamos, mas a democracia musculada (o diploma regional da Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos de Ensino Públicos são disso exemplo), a mentira, a sabujice, o compadrio, o insulto grotesco e ofensivo aos Órgãos de Soberania, o roubo público julgado ou em julgamento, a sistemática violação dos instrumentos de planeamento, os alegados favorecimentos e ?negociatas? por esclarecer e o crescimento de riquezas mal explicadas. A Autonomia não é nada disto e a Bandeira da minha Região não pode servir de cortina a tanto desmando político.
À meia-noite de 31 de Dezembro, olhando o céu repleto de fogo de artifício, os senhores ?entalados num colarinho branco?, deveriam ter mastigado as passas interiorizando a Região onde vivem, o sentido de família paulatinamente em destruição, a ostentação infeliz e podre que por aí vai, o ridículo da subserviência, as aparências de uma sociedade embonecada mas, por dentro, corroída nos valores. Certamente, não tomaram consciência do verdadeiro fogo que alastra por entre homens e mulheres desta terra. Um dia, presumo, o fogo há-de rebentar nas suas próprias mãos.
Uma palavra final: parabéns Amigo Edgar Silva pelo livro Os Instrangeiros da Madeira. De facto, a pobreza, a todos os níveis, não é uma fatalidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

André Escórcio
Mestre em Gestão do Desporto. Professor do Ensino Secundário, Funchal
André Escórcio
Mestre em Gestão do Desporto. Professor do Ensino Secundário, Funchal

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