Em 1965, quando saiu a primeira edição de Alegria Breve, alguns críticos vaticinaram que se tratava de um romance de solidão que fechava todo um ciclo ficcional iniciado com Mudança (1949) e que dificilmente Vergílio Ferreira reencontraria outros caminhos de ficção para prosseguir na sua aventura literária. E isso, claro, não aconteceu. Pelo contrário, pôde ainda publicar alguns dos melhores romances da moderna prosa portuguesa: Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Na Tua Face (1994) ou ainda Cartas a Sandra (1996), como despedida final aos oitenta anos e por desejar entrar no paraíso com esse belíssimo romance debaixo do braço. A acção narrativa de Alegria Breve passa-se em dois planos: o real e o irreal. Na releitura a quarenta anos de distância, dizemos de novo que é uma história inteiramente imaginada, não situada num tempo e espaço definidos, e o problema central é exactamente o que ao homem diz ter ele de assumir, em plena consciência, a visão perfeita do mundo em que vive, com o que nele existe de bom e de mau, de alegria e de desgraça, de ambição e de derrota, de vida e de morte. Mas a vida tem a sua natural continuidade e o homem prolonga-se na existência de um filho e este noutro filho que há-de ser seu e assim na eternidade do tempo. O filho do homem é a imagem real da vida, da sabedoria e da experiência que herdamos de outros homens. Tudo se desenrola, pois, no ?melhor dos mundos possíveis?, pelo menos na aparência. O que distingue ou atraiçoa esta verdade tão simples é que cada homem traz consigo a certeza de um dia ter de morrer, estar cansado, não ter já razões para nada... E esta visão que para os espíritos optimistas conduz ao desespero e à angústia de viver é, afinal, a lucidez de uma consciência atenta e capaz de tudo, tentando ?reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra?. Mas existe um aspecto bem importante neste romance, talvez tão relevante como o que nele se discute: é o que se relaciona claramente com a posição de Vergílio Ferreira que, neste romance, reflecte o seu cansaço, um cansaço de homem e de artista, para quem este nosso tempo não é de crise nem de liquidação. O reflexo desse cansaço manifesta-se ao longo do livro, quase sempre na confissão de que ?estás velho?, ?estás cansado?. Palavras de choque que avisam de que se trata sobretudo de um romance da fadiga de um escritor e de um homem que morre em solidão porque a vida já não satisfaz as suas exigências. Através desse cansaço da vida (ou saturação num género literário em plena crise - será?), o escritor cansa-se também da arte. Por isso, Alegria Breve é escrito em supetões, frases inacabadas, imagens secas que se repetem e a sombra que subjaz é ainda a de ?um mundo coado de neve? que reflecte ser o símbolo deste romance: a brancura (pureza) de uma alma que se perde e se conquista ao longo de Alegria Breve e foi depois retomada nesse sugestivo romance Nítido Nulo (1971).. Romance plenamente realizado, mesmo apesar de querer sugerir o que há de instável e de ambíguo no mundo moderno, acentuando ainda, como em Estrela Polar, o desencontro das personagens com a realidade e entre si próprias, este romance de Vergílio Ferreira fecha um ciclo que se podia afirmar ter atingido o ponto-limite da sua criação literária. Alegria Breve reflectiu, sim, na altura o cansaço de um romancista que se cansou de pôr em romance o que parecia ser impossível - mas a verdade do próprio ?mundo original?, o ?absurdo da morte?, a ?procura de um absoluto?, ter uma explicação para tudo, ou a ideia de que Deus morreu, foram e são problemas para os quais Vergílio Ferreira encontrou uma nova forma de os exprimir, discutir e apresentar aos leitores nos seus romances publicados nas décadas de setenta, oitenta e noventa.
EVOCAÇÂO DE MANUEL OLIVEIRA GUERRA (1905-1964)
Nascido em Oliveira de Azeméis, viveu e morreu no Porto onde se radicou em 1941, e foi aqui que Oliveira Guerra se tornou conhecido como poeta e como um verdadeiro defensor das relações culturais entre o Norte do país e a Galiza. Levou bem longe esse entusiasmo e em 1961dirigiu e editou a revista Céltica (Cadernos culturais luso-galaicos), de que saíram quatro números com colaboração de nomes importantes dos dois países. Oliveira Guerra foi sempre um homem generoso e sincero, um poeta devedor do bucolismo sentimental de João de Deus ou do lirismo vivido de António Correia de Oliveira, mas foi pelo seu convívio intelectual com gentes do Porto (António Pinheiro Guimarães, António Norton, Alexandre Babo ou Mário Dias Ramos e ainda com os pintores Carlos Carneiro e António Leite) que melhor pôde testemunhar os seus anseios literários e poéticos, talvez para ultrapassar os dissabores de uma vida comercial que foi dura e bem difícil. A simplicidade expressiva que se manifesta nos seus livros (Padre Nosso, 1932, com prefácio de Ramada Curto; Ave Maria, 1060; Algemas, 1962; ou nos contos de Caminho Longo, 1960), é prova provada dessa singeleza poética e ficcional de quem não teve tempo para melhor depurar e consolidar uma obra que desvendasse outros registos das agruras que a vida lhe fez conhecer, como se pressente nos poemas póstumos evocativos de um Porto que levou consigo para a morte. Na altura em que passa o centenário do seu nascimento, evocamos a memória de Manuel de Oliveira Guerra que, sendo um poeta do seu tempo, ainda hoje merece ser revisitado pelo verdadeiro sentido da sua poesia e dos seus contos.
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