Foi coisa provavelmente nunca vista noutros países da Europa alargada como hoje a reconhecemos: a maioria esmagadora dos nossos grupos profissionais, com representação sindical ou associativa, - agricultores, pescadores, operários, comerciantes, industriais, professores, estudantes, médicos, enfermeiros, polícias, militares, magistrados, funcionários da administração pública e "tutti quanti" - manifestando-se, em uníssono, contra a governação do País, não por os induzir a reivindicação de um paradigma social equânime que respondesse às necessidades de toda ou da maior parte da Nação; tão-pouco uma posição ideológica comum, reveladora daquilo que a dialéctica marxista avocaria como uma "oposição dos contrários" corporizada na luta de classes. Mas apenas a defesa dos interesses "específicos" dos vários grupos profissionais, no geral alheios a vinculações partidárias. Tais manifestações, expressas umas em greves, outras em declarações anunciadoras de acções igualmente críticas da actual governação, colocam Portugal num estado de suspensão (insistimos em chamar-lhe Nevoeiro...) que muita gente espera termine, por acção ou indução, com a escolha do próximo Chefe do Estado, almejado ora com a presciência de um soberano absoluto, que reina e governa, ora como um paraclético provedor dos poderes instituídos. Em tese, o que anunciam as vozes audíveis? De um lado, que o Estado, considerado pessoa-de-bem, deve ser o árbitro no conflito de interesses das classes ou grupos em confronto, reservando-se o direito de interpretar os valores éticos e morais que garantem a coesão do todo, segundo o princípio incontestável de que só há justiça social quando a felicidade de alguém não se realiza à custa da infelicidade de outrem. De outro lado, que o Estado só deve exercer os poderes que lhe são delegados pelas "forças criadoras" da "sociedade civil", não lhe cabendo o direito de coartar a livre iniciativa razoirando as capacidades naturais da pessoa humana, em função das quais os indivíduos se diferenciam e realizam segundo as suas diferenças. Se aos eleitores que vão escolher o seu representante máximo fosse proposto o exercício teórico de, entre aquelas duas premissas, descobrir o caminho certo do homem justo e feliz, eles não teriam menores dificuldades do que - formatados segundo um modelo (hábito) de vida em que a competição gera o êxito - aceitar que na humanidade impera a lei dos mais aptos (fortes), igualzinha ao resto do mundo animal. Nas universidades, nas igrejas, nas tertúlias, bem se afirma que o Homem é um animal especial, porque tem a consciência do Bem e do Mal, do Belo e do Feio, mas algo resiste à excelência: a sedução do poder e a sede de riqueza, nas suas manifestações mais ou menos conseguidas. Do tipo de práticas que levam à sua concretização derivam as grandes crises sociais: umas nacionais, outras mundiais. Na altura em que fazemos esta reflexão, privilegiando a vertente sócio-económica da "crise portuguesa" (mas há outras vertentes), ouvidos os concorrentes ao grau mais elevado da representação nacional, foi, certamente, de algum modo frustrante para a parte ansiosa do País não ver nomeadas as soluções, concretas e abrangentes, que resolveriam a "crise", para que os crentes nos bafejos da Sorte exclamassem, aliviados: "Bingo!" e os seguidores das leis do Mercado: "Eureka"! É que os candidatos apenas teorizaram os efeitos da "crise", não ousando desiludir os crentes na possibilidade de fazer mudanças sem incorrer em rupturas ( demonstrando o quadrado do círculo) e assim se furtando ao anúncio de que chegou, ou pode estar próximo, o momento crítico em que, no dizer de Henri Lefebvre, "a razão deve e pode impor-se à totalidade das actividades humanas a fim de as organizar de um modo racional, denunciando as ilusões ideológicas, os feiticismos e todas as formas de alienação". Mas nenhum dos candidatos ousou dar um nome às possíveis causas dos efeitos, não arriscando mais do que chamar-lhes "estruturais", o que tanto pode significar que a origem do problema está no paradigma económico-financeiro de um forte grupo social, como nos hábitos da sociedade em geral, quando orientada segundo uma "filosofia" neo-hedonista de que a Felicidade é proporcional aos bens do Consumo. Vagamente se falou em reformas de cultura e mentalidades (Fernando Pessoa dizia que a nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência dela), sendo evidente a preocupação de não ferir a ideia tranquilizante de uma continuidade sem verdadeiras rupturas, como seria a de, por hipótese académica, o País ter de se inspirar entre o modelo cubano e o japonês. Disto tudo se poderá inferir que os portugueses, tão permeáveis ao terror de um retorno à pobreza franciscana do ciclo salazarista (e mais grave ainda, de parecerem pobres), continuarão a esperar que a Providência os salve de ficarem pior do que estão, confiando, como os habituou uma historia tendenciosa pontuada por acasos felizes, em que, passado o Nevoeiro, voltará o sol do pleno Contentamento. Aguardemos, pois.
|