Insisto em contar ao Marcos histórias que o desgaste da memória ainda não apagou. Falo-lhe dos primeiros tempos de uma viagem em busca de uma Escola mais fraterna. Descrevo episódios luminosos, poupando o Marcos a relatos de ignomínias, pois o meu neto há-de chegar a descobrir por si próprio e a seu tempo, que os maravilhosos seres humanos também são capazes da perfídia e da maldade. Explico-lhe como, perante as contrariedades e insucessos, nos agarrávamos aos livros como a bóias salvadoras. Nos momentos mais críticos, quando a vontade de desistir era imperativa, evitávamos o naufrágio, relendo-os, para percebermos onde nos teríamos enganado na interpretação dos mapas que nos levariam à praia prometida. Só não sabíamos que toda a viagem tem regresso. Que o barco que parte não é o mesmo que regressa, mas regressa. Que a vida é toda ela reencontro. Que somos um pouco de cada ser que encontramos na viagem. Que há seres viajando ao nosso lado, noutras viagens. E que até os mortos queridos vão a par, quando ousamos contrariar ventos predominantes. Se alguém não acredita, que medite no que vou contar. Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor, o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura. Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o tempo que fazia? Mas enganei-me, pois o motorista falou-me da sua infância no Nordeste. Contou-me histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado, bem precocemente, da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro. Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta história igual a tantas outras histórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros? Mas o melhor estava para vir. A certa altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala: - ?Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?? Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta. ? ?Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou?. Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica: - ?O senhor sabe o que faz a minha mulher?... É professora! Quando nos casámos, ela já tinha estudos, mas quis tirar um curso. Só tinha um problema: não gostava de ler. E eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso?. Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato: - ?A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o curso de professora?. Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget... E rematou a conversa, por estarmos a chegar ao nosso destino: - ?Para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da Educação? compreende?? Não retorqui, e ele concluiu, dizendo: - ?Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a certas crianças. E até me deu vontade de chorar?. Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua história. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se? No decurso das nossas vidas, há dias assim, prodigiosos. Acabo de receber uma chamada telefónica. Seria idêntica a muitas outras, um convite para fazer uma palestra sobre a Ponte. Mas a minha memória acendeu-se, ao escutar o nome da pessoa que me falava do outro lado da linha. Ousei perguntar se seria filha ou familiar da professora Isabel Pires. A minha interlocutora respondeu que era ela mesma, a Isabel em pessoa. Na década de 70, sem que a Isabel o soubesse, foi uma sua obra que iluminou os caminhos da aprendizagem da matemática de muitas gerações de alunos da Ponte. Encontrei a Konstance Kamii, professora do Alabama, num aeroporto estrangeiro, quando regressava de um congresso, onde (coincidência?) fui falar da Ponte. E agradeci-lhe um contributo que ela ignorava ter dado. Foram os seus estudos sobre autonomia, a partir dos contributos de Piaget, que sustentaram o quanto basta de teoria, nos primeiros tempos do nosso projecto. Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu primeiro porto e se apronta para nova viagem, começo a coabitar com um Mistério a que não dou nome. Há algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Os projectos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses projectos também se alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam anjos pela Terra?
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