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Ser professor é...

? aquilo que aumentou não foi o tempo de trabalho docente mas o tempo de trabalho dos professores. Uma decisão cuja legitimidade importa discutir, já que obriga os professores a assumir funções que nada têm a ver com o que é suposto serem as suas tarefas profissionais.

A regulamentação do horário extra-lectivo dos professores é uma decisão que o Ministério da Educação assumiu mais para mostrar serviço do que, propriamente, para obter resultados. Uma decisão que se justifica mais em nome da reabilitação social das escolas públicas do que da sua reabilitação educativa e pedagógica, como se a primeira, para acontecer, não dependesse da ocorrência da segunda.
Os professores portugueses são o que são. Têm virtudes e defeitos como os demais cidadãos. Um número bastante significativo destes docentes terá que encontrar novos rumos para a acção profissional que quotidianamente desenvolvem nas suas escolas. Admite-se até que a necessidade de promover transformações ao nível de muitas das práticas educativas em uso, obriguem ao desenvolvimento de pressões várias sobre esses professores e as intervenções que os mesmos protagonizam. Sendo estes os problemas que seria necessário enfrentar de forma urgente, serena, firme e solidária, não são estes, contudo, os problemas que, no domínio da Educação, o governo Sócrates elegeu como os problemas educacionais prioritários a resolver. Pode mesmo afirmar-se que, também neste âmbito, o marketing subjugou as medidas de política educativa. Para a equipa liderada por Maria de Lurdes Rodrigues o que importa, afinal, é fazer passar a mensagem de que este governo está disposto a combater os eventuais privilégios de professores que usufruem de regalias em excesso face ao pouco tempo de trabalho que são obrigados a cumprir. Daí o ataque aos ditos privilégios e a proclamação do aumento do tempo de trabalho dos professores. Deixando para outros a abordagem do tema dos privilégios, interessa-nos olhar com mais atenção para a questão do tempo de trabalho, não só porque é esta a questão que justifica o tema desta crónica, como é, igualmente, esta a questão que justifica que se pergunte: O que significa ser professor?
E a pergunta impõe-se porque face às medidas adoptadas pelo governo pode concluir-se que aquilo que aumentou não foi o tempo de trabalho docente mas o tempo de trabalho dos professores. Uma decisão cuja legitimidade importa discutir, já que obriga os professores a assumir funções que nada têm a ver com o que é suposto serem as suas tarefas profissionais. Entreter meninos e ocupar os seus tempos livres, para além de não ser uma tarefa que compita aos professores assumir, pode ter, ainda, um efeito devastador sobre a sua auto-estima profissional, no momento em que os vulnerabiliza não só face aos seus alunos, como, sobretudo, face à sociedade em geral. A reconfiguração da profissão docente não passa pela diversificação dos papéis que se espera que os professores assumam, mas pela diversificação das estratégias e dos dispositivos de mediação e de comunicação que estes animam, de forma cooperada com outros colegas e com os seus alunos. Caso contrário, e é nesse sentido para que apontam as medidas do governo, inicia-se um processo de desqualificação profissional que para além de contribuir para iludir a produção das respostas necessárias face aos problemas reais das nossas escolas, contribui, também, para desmobilizar os professores de assumirem iniciativas e de se envolverem de forma empenhada nesse processo.   
Mas não é necessário que os professores passem mais tempo nas escolas de forma a responder às inúmeras exigências e aos desafios que se lhes colocam?
Certamente que sim, mas para exercerem as funções que só a eles compete assumir, em escolas cuja função é a de permitir que todos os alunos que as frequentam se possam apropriar, de facto, do património cultural que, hoje, temos ao nosso dispor, condição necessária para suscitar o seu desenvolvimento pessoal e social, em função e através do seu envolvimento no processo de apropriação desse mesmo património. Neste sentido, os professores têm que honrar os seus compromissos profissionais intervindo nas salas de aula e fora delas, em espaços onde possam discutir entre si e responder, para que o seu trabalho lectivo aconteça, a três questões essenciais: 
- O que é que se espera que os alunos aprendam?
- O que é que se terá que fazer para que os alunos aprendam aquilo que se espera que eles aprendam?
- Como é que se avaliará se os alunos aprenderam o que se esperava que eles aprendessem e se as estratégias utilizadas pelos professores foram as mais adequadas para que os alunos tivessem aprendido o que se esperava que eles tivessem aprendido?
Sendo estas questões simples e fundamentais, não são, todavia, questões que, hoje, pressuponham uma resposta imediata. Obrigam os professores a trabalhar em conjunto nos seus tempos extra-lectivos, a procurar respostas, a contactar especialistas, a envolver-se em acções de formação, a produzir e a discutir as potencialidades e as vulnerabilidades dos dispositivos de intervenção e dos materiais didácticos utilizados ou a partilhar saberes. É este tipo de trabalho que urge fazer nas escolas. Um trabalho que necessita ser apoiado, estimulado e valorizado, para que os nossos alunos possam aprender mais e melhor. Um trabalho cujos resultados não sendo imediatamente visíveis, permite, no entanto, que as escolas possam cumprir as obrigações educativas que lhes compete assumir. Se é certo que esperar, em salas de professores repletas, pela ordem da funcionária de serviço para saber qual é a turma onde vamos assumir o papel de amas-secas confere uma ilusória credibilidade ao governo, também é certo que acaba por penalizar, e de que maneira, alunos, professores e escolas. Não são os «cruzadexes» que se levam para dentro das salas de aula ou os torneios de batalha naval, de damas e de xadrez que aí se animam que hão-de resolver os números do insucesso em Matemática ou os problemas de literacia dos jovens portugueses. Talvez contribuam para a divulgação de sondagens favoráveis ao governo, ainda que continuem a adiar o país.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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