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"Coisas do outro mundo"

Os do 9º A falaram sobre as suas férias: Espanha, Algarve, Alemanha e até Maldivas (?) Os alunos do 9º D, a propósito de férias, falaram das duas ou três idas à praia local, da maravilha de poderem ficar a ver televisão pela noite dentro, dos jogos de futebol na rua.

O primeiro dia de aulas é para se conversar um pouco com os alunos, o que, não parecendo, é extremamente importante.
Os do 9º A falaram sobre as suas férias: Espanha, Algarve, Alemanha e até Maldivas.
Estes alunos têm em casa as melhores condições sócio-económicas (boa comida, conforto, bons médicos e pais - apesar das inúmeras ocupações - com disponibilidade de tempo) e uma condição cultural que lhes vai permitir quer uma mais fácil adaptação aos conteúdos veiculados pelos professores e pelos manuais, quer um melhor acesso às ideias em termos de significação comunicacional.
São também aqueles a quem a Escola parece oferecer melhores oportunidades. Ao longo de todos os anos de permanência nos estabelecimentos de ensino, estes alunos têm, genericamente:
- os melhores horários, com aulas de manhã e só duas tardes ocupadas (e nunca à sexta-feira);
- as reuniões em horários mais acessíveis para os encarregados de educação;
- um grupo de professores efectivos que se sente contente por os acompanhar ao longo do 3º ciclo e por os receber no Secundário.
Muitas vezes, estas turmas formam-se assim no primeiro ciclo ou mesmo no pré-escolar; não se desfazem no segundo ciclo, nem no terceiro; obra do acaso ou não, têm geralmente muitos filhos de professores e de funcionários das respectivas escolas e de outras, alguns filhos de médicos ou de engenheiros, advogados; um ou dois alunos não pertencem a esta ?casta?, garantindo a ?heterogeneidade?, mas ficando quase sempre retidos no primeiro ano do ciclo, como se tal não fosse previsível.
São tidas por turmas com sucesso académico e sem problemas comportamentais releváveis.
Acontece que os alunos do 9º A não precisam da Escola Pública para quase nada daquilo que ela, tradicionalmente, é suposto oferecer: têm em casa bons computadores com acesso à Net (que ?sabe? muito mais do que qualquer professor), têm famílias com um conhecimento e um domínio do mundo enormes, têm ?diciopédias?, livros, jornais e revistas. O que a escola lhes pode oferecer é ?o outro lado do mundo?: outras ideias, formas de viver, diferenças, valores humanos. Mas se os alunos do 9º A, oriundos do mesmo meio sócio-cultural vivem ?fechados? nas suas turmas de ?iguais a si mesmos?, como poderão aprender alguma coisa sobre a vida e o respeito pelos outros?
Que responsabilidade tem a Escola Pública, transmissora dos mais importantes valores, democráticos e não só, perante estes futuros cidadãos?
Os alunos do 9º D, a propósito de férias, falaram das duas ou três idas à praia local, da maravilha de poderem ficar a ver televisão pela noite dentro, dos jogos de futebol na rua. Nem falaram na fome, no pai que é já o terceiro padrasto, na cama partilhada com primos e irmãos, nas dores de barriga, no longo caminho a pé para chegar à escola debaixo de chuva, sem um casaco; que agora há-os baratos, mas não há tempo nem lembrança para os ir comprar.
Já não é uma turma que venha ?de trás?. No infantário eram vinte e oito. Dois repetiram a sala de cinco anos, por ?falta de maturidade?; cinco demoraram mais de três anos a aprender a ler; três foram retidos no quinto ano por dificuldades a Língua Materna; quatro ficaram no sexto, por causa da brincadeira; no sétimo, retiveram-se seis, devido à Matemática e às Ciências Físico-Químicas e mais qualquer coisa; no oitavo foram as faltas: os primeiros cigarros e os beijos iniciais. Da turma primitiva não restam senão dois; mas não se pense que a sala está vazia. Não. Se uns foram ficando para trás, outros foram chegando, já também bastante atrasados. Nunca chegaram alunos que as escolas considerassem ?bons?.
O 9º D tem hoje vinte e seis alunos com idades entre os quinze e os dezassete anos. Fizeram na escola um percurso errante entre as aulas em que não viram interesse e os recreios e o lado de lá das grades, muito mais atractivos. Poucas vezes sentiram que as SUAS escolas - apesar do esforço de alguns docentes, nomeadamente aqueles mais jovens a quem, felizmente, foram entregues ano após ano - lhes tivessem oferecido alternativas ao seu modo de viver ?herdado? dos pais e dos avós que nunca andaram na escola ou a abandonaram bem cedo. Muitos serão os jovens sem rumo da sociedade perdida no futuro. E os que apesar de tudo isto conseguirem singrar serão os verdadeiros heróis da posteridade.
Que responsabilidade para a Escola Pública? Quem é necessário servir em primeiro lugar? Que sociedade democrática? Que futuro para os nossos filhos?
Felizmente esta história de ?coisas do outro mundo? não acontece em todos os estabelecimentos de ensino. Há-os, felizmente, bem conscientes do seu papel educativo na sociedade em que vivemos. São ?histórias?? ouvem-se por aí, às vezes. Talvez aconteçam de quando em quando.
Para nossa vergonha.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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