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Registos sobre a apatia e a indiferença pós-moderna

O indivíduo pede para ficar só. Cada vez mais só. E, simultaneamente, não se suporta a si próprio. Odeia estar a sós consigo. Aqui, o deserto já não tem começo nem fim.
Quem não está hoje sujeito à dramatização e ao stress? Envelhecer. Emagrecer. Engordar. Desfear-se. Dormir. Educar os filhos ou os netos. Partir para férias. Regressar de férias. Tudo é um problema? As actividades elementares tornaram-se um problema.
 Quanto mais os políticos se explicam e exibem na televisão, mais toda a gente se está marimbando. Quanto mais comunicados os sindicatos distribuem, menos lidos são. Quanto mais os professores se esforçam por fazer com que os alunos leiam, mais estes deixam de lado os livros? Indiferença, uma profunda indiferença por saturação toma-nos todos. Indiferença por saturação, excesso de informação pueril e de isolamento.
A indiferença identifica-se hoje com a pouca motivação, com a «anemia emocional» (Riesman), e também com a desestabilização dos comportamentos e juízos «flutuantes» na esteira das flutuações da opinião pública. A comunicação é efémera e flutuante. Aparece, sobe ao cume, regressa de pronto à base e desaparece. Efémera, instável, flutuante, promotora permanente da indiferença.
A apatia já não é uma ausência de socialização. É uma nova socialização flexível e económica. É uma descrispação necessária ao funcionamento do novo capitalismo enquanto sistema experimental, acelerado, flutuante, sistemático.
No capitalismo moderno a apatia torna possível a aceleração das experimentações, de todas as experimentações e não apenas da exploração. Podemos então perguntar: está a indiferença geral ao serviço do lucro? Não. Não apenas ao serviço do lucro. A indiferença que se apossou dos povos atinge todos os sectores da vida e, por isso, ela é generalizada. A indiferença é agora meta-política, meta-económica, permitindo ao capitalismo entrar na sua fase de funcionamento operacional.
O novo capitalismo apela ao efémero, ao flutuante? e por isso à desestatização. Maldito seja o Estado, grita. Acontece que o Império Romano não construiu as suas estradas, pontes e aquedutos com os fundos angariados em actos de beneficência organizados por um grupo de jograis ambulantes.
A vida nas sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova estratégia. Ela destrona o primado das relações de produção em proveito das relações de sedução.
A indiferença cresce. Em lado algum é tão visível como no ensino. Aqui, em poucos anos, com a velocidade de um relâmpago, o prestígio e a autoridade dos docentes desapareceram quase por completo.
Hoje, o discursos do Mestre encontra-se banalizado, dessacralizado, em pé de igualdade com o dos média. O ensino é uma máquina neutralizada pela apatia escolar, feita de atenção dispersa e de cepticismo desenvolto face ao saber.
Grande desapontamento dos Mestres. É esta desafectação do saber que é significativa. Muito mais do que o tédio, de resto variável, que tomou conta dos alunos das escolas.
Agora a escola é menos parecida com uma caserna e mais parecida com um deserto (ressalvando-se o facto de toda a caserna ser um deserto), onde os jovens vegetam sem grande motivação ou interesse. Perante este desinteresse as autoridades reagem propondo mais do mesmo. Dizem ser necessário inovar a todo o custo: mais liberalismo, participação, investigação pedagógica? E o escândalo está nisso mesmo, porque, quanto mais a escola se põe a ouvir os pais e os alunos mais estes últimos desabitam sem ruído nem convulsões esse lugar vazio.
As lutas, os movimentos, o associativismo pujante e as greves estudantis do pós-68 desapareceram. Os estudantes são agora seres inertes. Vivem a moda, o efémero, o absolutamente transitório, a imitação. Mais do que agir só importa macaquear os «produtos» vendidos pelos media. O debate e a contestação social e política extinguiu-se. A escola é um corpo mumificado e os docentes corpos fatigados, incapazes de lhe devolver a vida.
Não se trata, para falar com propriedade, de «despolitização». Os partidos, as eleições, continuam a «interessar» a maioria dos cidadãos. Mas interessam-lhe do mesmo modo (e até em menor medida) que as apostas no totoloto ou no euromilhões, a meteorologia, a vida dos «famosos» ou os resultados desportivos. A política entrou na era do espectáculo?
Nos noticiários passa-se, com naturalidade, da política às variedades. O relevo e o tempo dado a cada notícia é determinado pela capacidade de entretenimento que esta tem. A sociedade actual não conhece a hierarquia, as codificações definitivas, o centro e a periferia. Nada mais lhe interessa do que estimulações e opções equivalentes em cadeia? Daqui resulta a indiferença pós-moderna. Indiferença por excesso, não por defeito, por hiper socialização, não por privação.
O que é que se mostra ainda capaz de nos espantar ou escandalizar? A apatia que toma conta progressivamente do ser humano corresponde à velocidade da informação. Esta, uma vez registada é esquecida. Varrida de cena por uma outra?
O homem ou a mulher cool assemelham-se ao telespectador que experimenta «para ver», um a um, todos os programas da noite. Ao consumidor que enche o carrinho no supermercado. Ao veraneante que se angústia na escolha entre as praias espanholas e o campismo na Córsega? A apatia pós-moderna é induzida pelo campo vertiginoso dos possíveis.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Gilles Lipovetsky

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
Gilles Lipovetsky

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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