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"A solução é permanecer em casa dos pais"

Incerteza e precariedade marcam a vida dos jovens artistas portugueses

Os trabalhadores das áreas artísticas vivem na permanente angústia de não saberem quando têm trabalho. O carácter sazonal deste tipo de actividade não lhes permite pensar a longo prazo e assumir compromissos financeiros elementares, como a compra de casa própria.
Apesar de terem períodos de inactividade, vêm-se obrigados a descontar como se ganhassem um salário mensal e a maioria não usufrui de direito a baixa ou a subsídio de desemprego, o que constitui uma injustiça social grave.
Cecília Dias, 26 anos, actriz, conta-nos na primeira pessoa o que é a angústia de viver nesta incerteza e explica-nos o exemplo do caso francês, onde os artistas vivem sob um outro regime.  

Como é seguir uma carreira artística em Portugal, nomeadamente na tua área, o teatro?

Quando decidi estudar teatro fi-lo com a consciência de que iria ter de vencer o ?stress? e a ansiedade próprios de quem não sabe se e quando consegue arranjar trabalho. Na generalidade dos casos um actor trabalha dois ou três meses num determinado projecto, consegue contrato durante aquele período, mas quando ele termina tanto pode ter outro em perspectiva - o que é muito raro - como pode estar meses, ou mesmo anos, sem voltar a pisar o palco. No meio desta incerteza há sempre muitos actores que acabam por desistir. E quem fala do teatro pode referir-se a outras áreas das artes do palco, à expressão plástica ou ao cinema.

É assim tão difícil?

Quando se é persistente, a procura de trabalho pode prolongar-se por meses e implicar muitas deslocações para a realização de ?castings? e muitos contactos para saber que companhias estão a precisar de actores. Quando esse esforço não se traduz em resultados práticos, resta ter alguma ponta de sorte e procurar trabalho nas escolas que oferecem formação em expressão dramática ou dar formação a grupos amadores, expediente a que muitos recorrem para garantir um salário certo ao final do mês. Depois, há ainda aqueles que trabalham nas mais diversas profissões - tenho um colega que está empregado numa bomba de gasolina, por exemplo.
Tudo isto leva a que seja muito complicado pensar em comprar casa ou estabelecer qualquer tipo de responsabilidade financeira ou familiar. Muitas vezes nem é uma questão da qualidade do trabalho, porque há pessoas que têm uma qualidade indiscutível, mas que não aguentam a incerteza desta profissão.

O que acontece quando, de um momento para outro, se deixa de poder assumir compromissos financeiros? Conheces pessoas nessa situação?

Sim, conheço pessoas que deixaram de poder garantir o pagamento da renda da casa e as prestações de outros empréstimos porque ficaram sem trabalho de um momento para outro. Para muitos, a solução é permanecer em casa dos pais.

Partindo da tua própria experiência, como caracterizas a evolução da cena artística nos últimos anos?

Eu julgo que nos últimos anos se tem vindo a assistir a um decréscimo da actividade artística em geral, porque a economia tem piorado e a cultura, neste contexto de crise, não é considerada uma necessidade básica que determine a qualidade de vida das pessoas, ao contrário do que se passa em outros países. E quando se está em crise é inevitável que uma das primeiras áreas a sofrer cortes orçamentais seja a cultura.
Bem recentemente, uma companhia de teatro do Porto e uma companhia de bailado em Lisboa acabaram por fechar, o que ilustra bem a situação que se vive. Entretanto, no norte do país a actividade teatral está praticamente parada porque o processo de atribuição de subsídios foi impugnado e deixou muitas companhias sem condições de realizar o seu trabalho.
Na maioria das vezes a principal preocupação dos grupos é ter dinheiro para pagar os espaços que utilizam, sobrando pouco dinheiro para pagar a encenadores, a figurinos e organizar um espectáculo. E quando não se sabe se irá conseguir-se pagar as contas no dia seguinte é mais difícil ter-se disponibilidade anímica para se ser criativo. As pessoas trabalham muito por amor à camisola.

A falta de público também não ajuda?

De uma forma geral, os artistas portugueses são pouco apoiados e reconhecidos no país. Muitos deles acabam por obter reconhecimento no estrangeiro e só depois aqui. O Estado, por seu lado, investe muito pouco em estruturas de formação e divulgação das artes do palco, no cinema e na música. Depois, é igualmente muito difícil de obter patrocínios por parte das empresas e de particulares, que geralmente são atribuídos a grandes companhias, nomeadamente através da Lei de Mecenato.

Tendo em conta o carácter sazonal das profissões ligadas à área artística, que espécie de retaguardas financeiras existem, nomeadamente no que se refere à segurança social e aos impostos?

A larga maioria dos trabalhadores da área artística são considerados independentes e passam recibo verde, não tendo, por isso, direito a baixa ou a subsídio de desemprego. Se tivermos um acidente de trabalho, por exemplo, estamos por nossa própria conta e risco.
Ao contrário do que se possa pensar, mesmo os actores que integram o elenco dos teatros nacionais não fazem parte de um quadro fixo, são trabalhadores independentes e passam também recibos verdes.
Apesar disso, somos obrigados a fazer descontos para a segurança social mesmo quando estamos em períodos de inactividade, com a agravante de a contribuição ter aumentado recentemente, uma situação que está a afligir muitas pessoas. Eu diria que mais de 90% dos meus colegas de profissão não paga a segurança social porque não tem dinheiro para suportar esse encargo. É muito grave que as pessoas descontem todos os meses, independentemente de estarem a trabalhar ou não, e não beneficiem absolutamente nada com isso.

Não há nenhum sub-sistema dirigido especificamente aos artistas, à semelhança do que acontece em outras profissões?

Infelizmente, a classe artística em Portugal não é muito unida e desconfio que algum dia seja possível congregar interesses comuns para concretizar esse objectivo. Actualmente existem dois sindicatos ? um deles passa uma espécie de carteira sindical, porque não existe, de facto, uma carteira de actor profissional ? e ambos têm uma actividade reduzida.

As finanças não prevêem uma situação de excepção no que se refere a impostos?

Quando há três anos consultei a legislação cheguei à conclusão que não existe nenhum regime especial que preveja a redução de impostos em situações de trabalho sazonal como  aquelas a que estamos sujeitos. O encerramento da actividade profissional durante os períodos de inactividade, processo a que alguns recorrem, acaba por não compensar por períodos curtos de dois ou três meses, porque se torna dispendioso e dá muito trabalho por causa da burocracia.

Como funciona a retaguarda social e financeira em outros países?

O país com cujo sistema estou mais familiarizada é a França, onde sei que um actor faz descontos para a segurança social mas o Estado garante uma contrapartida nos momentos de inactividade. Alguém que trabalhe durante dois anos, por exemplo, sabe que estará coberto por um período mínimo de meio ano, durante o qual o Estado assegura um salário equivalente à média dos descontos. Isso faz com que haja não só dinheiro para formação contínua como também menos espaço para angústias pessoais.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Cecília Dias
Actriz
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Cecília Dias
Actriz
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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