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A senha

Sócrates costumava dizer que nada sabia. Não saber constituía uma certeza original para conhecer. Declarando um estado inicial de falta, preparava-se para buscar o verdadeiro. Dizer não saber era preparar-se para a aventura exitosa do conhecimento.

Em uma das conferências que realizou na PUC, no Rio de Janeiro, quando esteve no Brasil em 1973, Michael Foucault propôs para as pessoas presentes uma brincadeira de adivinhação. Apresentou o regulamento de uma instituição que existiu nos anos 1940/45 e perguntou se era uma fábrica, uma prisão, um hospital psiquiátrico, um convento, uma escola ou um quartel. Embora pudesse ser identificada ? era uma fábrica ? diz Foucault que poderia ser qualquer uma entre as instituições citadas. Um enigma que na verdade terminava expondo as semelhanças, por exemplo, entre as práticas e o cotidiano de uma escola e de uma prisão. Recentemente, depois de ser admitido para um contrato de trabalho em uma instituição pública, um episódio me fez recordar esta brincadeira de descobrir um lugar a partir da apresentação de suas características. Gostaria de propor aqui um jogo parecido, mas com uma modificação. A instituição será previamente revelada, mas uma palavra precisará então ser encontrada. Palavra que deverá distinguir este estabelecimento de qualquer outro.
No primeiro dia de trabalho nesta universidade, ao ser avisado sobre a senha para usar uma das máquinas disponíveis na sala dos professores, meu agradecimento pela informação escondia o reconhecimento de que estava recebendo mais do que uma palavra ou passe para utilizar o computador. Foi entregue uma chave para ingresso em todo o edifício. Uma permissão de acesso, mas principalmente fui comunicado sobre uma condição para permanecer ali. Para ter um lugar nesta corporação, como em qualquer outra, é preciso admitir seus regulamentos internos e ter conhecimento das práticas que zelam por sua legitimidade em toda a sociedade. Uma senha que deve ser gravada para lembrar seus usuários de um mérito particular. Portanto, trata-se de aceitar que uma expressão pudesse convenientemente traduzir uma diferença. Trata-se, é verdade, de uma palavra pertinente a sua reconhecida vocação institucional. Mas o que chama atenção é o seu uso aparentemente fortuito enquanto encarna uma finalidade maior. Silenciosamente digitada em um espaço reservado para a sua seleção, não deixa de falar alto a respeito do que deveria significar para todos. Uma escolha elaborada sobre o que deve ser repetido compulsoriamente, declarando naturezas e determinando espaços. O que surpreende não é o aviso de um interesse, mas o imperativo com o qual uma rede é construída classificando o que é feito dentro dos seus muros, sem disfarçar as exclusões que comete. Que senha é esta? Conjunto de caracteres destinado a identificar o usuário ou a permitir acesso a dados, programas ou sistemas que não estão disponíveis ao público (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).
Sócrates costumava dizer que nada sabia. Não saber constituía uma certeza original para conhecer. Declarando um estado inicial de falta, preparava-se para buscar o verdadeiro. Dizer não saber era preparar-se para a aventura exitosa do conhecimento. Enquanto presumem conhecer, sem a veracidade que apenas a consciência da verdade proporciona, os homens seguem atribuindo importância ao erro e à ilusão, conduta provocada pela demasiada confiança nas faculdades dos sentidos e nas formas costumeiras de direção da vida. Deste modo, Sócrates guardava para o saber um lugar distinto entre as ações humanas. Lugar que mais tarde poderia proteger as instituições de ensino da invasão e do contato não previsto. Até ser escolhida como a palavra secreta para abrir o computador.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Aristóteles de Paula Berino
Faculdades Unificadas Serra dos Órgãos (FESO), Teresópolis ? Rj
Aristóteles de Paula Berino
Faculdades Unificadas Serra dos Órgãos (FESO), Teresópolis ? Rj

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