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"Não há performance sem pedagogia e não há pedagogia sem performance"

AS POLÍTICAS EDUCATIVAS E SOCIAIS À LUZ DA RECONFIGURAÇÃO DOS ESTADOS EUROPEUS

António Magalhães em entrevista à  Página da Educação

Estaremos a caminho da formação de um Estado europeu em rede? Ou será que ele já existe de facto? Que papel têm ainda hoje os Estados nação nesta lógica de reconfiguração e quais as suas implicações nas políticas sociais e educativas?
Estes são os temas que servem de mote à entrevista que a PÁGINA conduz este mês com António Magalhães, professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto, investigador do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES) e colaborador regular deste jornal na rubrica ?Reconfigurações?.
Apesar de a sua área de investigação se centrar sobretudo em torno da análise das políticas educativas do ensino superior e da sociologia política da educação, o conjunto de temas que dão corpo a esta entrevista integram a recente linha de trabalho que Magalhães tem vindo a desenvolver em parceria com Stephen Stoer, também ele investigador e professor da FPCE, que serão objecto de publicação em livro, até ao final deste ano, nas edições Afrontamento (?A Diferença Somos Nós?) e na Profedições (?Reconfigurações?). O seu último livro editado em Portugal, em 2004, tem como título ?A Identidade do Ensino Superior: Política, Conhecimento e Educação numa Época de Transição?, sob a chancela da Fundação Gulbenkian. 

O António Magalhães tem vindo a desenvolver um trabalho de investigação, em parceria com Stephen Stoer, em torno da reconfiguração da natureza do Estado à luz das transformações políticas, sociais e económicas ocorridas no contexto da globalização ? em particular no que se refere ao quadro europeu ? e as suas implicações em sectores-chave como a educação. Pode elucidar-nos acerca desse trabalho?

O trabalho que temos vindo a desenvolver procura questionar que tipo de Estado se está a criar no contexto da construção política, social e económica da União Europeia ? ou porventura dos ?Estados Unidos da Europa?, como preferem afirmar algumas vozes europeístas mais radicais. Para lidar com as diferentes proposições acerca da Europa e do eventual Estado europeu, eu e o Stephen Stoer procuramos utilizar como esquema analítico quatro metáforas através das quais essas proposições podem ser interpretadas.
Em primeiro lugar, existe um projecto de Estado que corresponde a uma Europa das nações, cuja metáfora será a bandeira, numa espécie de uma tentação do passado de construção da Europa à semelhança do que aconteceu com os Estados-nação, com um território, uma história, e mesmo uma religião ? alguns dizem inclusivamente que a Europa deve terminar onde o nome de deus muda de designação. É a Europa como uma mega-nação.
Uma outra metáfora é a associação, cuja inspiração fomos buscar a Mary Kaldor, que se concretiza na Europa dos temas aglutinadores, como os direitos humanos, justiça social, o euro, que faria do continente o ?campeão? destas causas comuns e cosmopolitas.
Uma terceira metáfora, cuja referência encontramos no trabalho do investigador de origem catalã Manuel Castells, refere-se à Europa como o primeiro Estado em rede, consubstanciando uma concepção de ontologia social ? as relações sociais, a forma como as sociedades se organizam e o modo como as relações humanas são conceptualizadas. O preceito é: ?estou na rede, logo existo?. Esta concepção da Europa como Estado em rede significa também que ela se assume como a face política da sociedade e da economia do conhecimento.
A última metáfora refere-se à Europa como um ?bazar?, que inclui, mas não sintetiza, as restantes metáforas, e que pretende ser sobretudo um modelo analítico. Esta metáfora foi inspirada em Clifford Geerz, um antropólogo norte-americano, que diz que o mundo se parece cada vez mais, em cada uma das suas localidades, com um bazar do Koweit e cada vez menos com um clube exclusivo de tipo inglês.
E nós aproveitamos esta metáfora precisamente porque consideramos que a Europa é uma mistura de reclamações ? de cidadania, de nacionalidade, de igualdade e de justiça social, onde a própria noção de fazer política em rede surge com alguma prevalência e pertinência ?, assemelhando-se, neste sentido, a um bazar, com a sua profusão de cheiros e de cores, onde se vai para comerciar, para casar, para estudar? O bazar é, enfim, um espaço público regulado onde os meus direitos e deveres não subsistem em função de qualquer privilégio epistemológico ou sociológico, mas em função de regras negociadas.
Julgamos que estas quatro metáforas captam, no essencial, as diferentes formas que o Estado europeu está a assumir, ou poderá vir a assumir, com a consciência de que, enquanto cidadãos, devemos partir do princípio que a Europa é algo que está em processo de construção e não é, de modo algum, um facto adquirido.

Manuel Castells refere, a este propósito, que embora os Estados continuem a existir, eles são, cada vez mais, nódulos de uma rede mais ampla de poder. A que rede se refere este autor e que papel têm ainda nela os Estados?

A rede é uma metáfora que pretende dar conta de novas formas de sociabilidade e de organização da sociedade. Este sociólogo utiliza-a para se referir à Europa como o primeiro Estado organizado em rede. Com esta afirmação ele pretende dizer que a União Europeia é uma rede de Estados onde as decisões políticas são produzidas por um conjunto de actores cujo peso na decisão depende do lugar que ocupam nessa mesma rede.
É interessante encarar esta ideia de uma forma articulada com aquilo que hoje é já praticamente um chavão: a globalização. Nesse sentido, a resposta que os Estados foram encontrando para lidar e reagir ao fenómeno da globalização, com a sua marca de capitalismo galopante, foi precisamente agregarem-se em unidades regionais, nomeadamente na Europa, na América do Norte e do Sul ou no sudeste asiático.
A forma pela qual estes blocos se organizam internamente implica uma certa perda de soberania, mas é curioso que, ao mesmo tempo que este novo contexto e estrutura ?sugam? essa soberania através dos organismos supra regionais, existe um movimento em sentido inverso que reivindica a reapropriação dessa mesma soberania: o local.

O que pode resultar dessa tensão?

Resulta precisamente a reconfiguração do Estado, isto é, o Estado enquanto grande regulador da nação em áreas como a educação, a saúde, o trabalho, está a ser recomposto por esta dupla lógica de globalização e de localização, a que alguns, por isso, chamam ?glocalização?.
Porém, quando tentamos perceber esta transmutação do Estado usando instrumentos conceptuais da sua ?tradicional? conceptualização, não conseguimos vislumbrar essa transformação. O que está a acontecer é que, quando introduzido numa rede e quando desafiado pelo nível local, o Estado tem de recompor toda a sua forma de ser e de actuar. Assim como os cidadãos, é claro.
Em termos educativos, por exemplo, existe uma crescente reclamação por parte dos professores e das comunidades escolares da flexibilização dos currículos nacionais, que têm sido acusados de demasiada hegemonia e apontados como causa da descontextualização do processo de ensino-aprendizagem. Será que o Estado já não pode ou não deve regular a educação? Não, o que é necessário é construir novas formas de o fazer. É isto que temos de tentar perceber, através dos instrumentos adequados. Da mesma forma, não conseguiremos perceber este regresso ao local senão virmos o outro extremo, o da globalização.

O capitalismo informacional e a importância do conhecimento

Citando um outro autor referenciado por si e por Stephen Stoer, Martin Carnoy, este defende a hipótese de o Estado se redefinir ao nível da educação, na qual ela funciona já não numa perspectiva ?fordista?, ou seja, como um sistema de selecção que visa colocar os indivíduos num mercado de trabalho estável e hierarquizado, mas como um sistema de formação ao longo da vida, baseado num conhecimento que permite às pessoas circularem num mercado de trabalho reestruturado pelo capitalismo informacional. Que comentário faz a esta ideia?

A concepção do sistema educativo, tal como nós a recebemos das conceptualizações do século XIX e XX, está assente numa espécie de engenharia social através da qual do sistema escolar se esperava que desenvolvesse as características pessoais dos indivíduos, os transformasse em cidadãos e os preparasse para o mercado de trabalho.
Eram estas as três dimensões da acção educacional do Estado moderno. A educação correspondia a um desenho político vertical, com um desenho homogéneo dos currículos e em que os indivíduos eram colocados num roteiro traçado pelo Estado.
O que está a acontecer actualmente, de uma forma crescente, é o facto de a educação estar a ser recolocada pelos indivíduos e pelos grupos sociais nos seus próprios roteiros pessoais e grupais.
São duas faces do mesmo processo, intimamente relacionado com a própria natureza actual do capitalismo, que, segundo Castells, se está a transformar num capitalismo informacional. Significa isto que o factor essencial de produção passa a ser o conhecimento, e sobretudo o conhecimento susceptível de ser traduzido em linguagem máquina, isto é, em bytes.

E na capacidade de reciclagem dos conhecimentos?

Sim, esta transformação tem vindo a ser traduzida, em termos de discurso educativo sob a forma de competências. A competência maior, neste caso, é a competência de ir continuamente adquirindo novas competências, o que significa que o sistema educativo terá de oferecer esta possibilidade aos educandos, aos cidadãos, se pretender fornecer-lhes instrumentos que os posicionem mais favoravelmente neste novo contexto.
E é aqui que se introduz um debate muito interessante. Há educadores que dizem que não são formadores profissionais e que a educação escolar não deve ser servil em relação às necessidades do mercado de trabalho e às necessidades da economia.
Em relação a isto, eu e Stephen Stoer dizemos que essa oposição que os educadores fazem entre as ?boas competências? ? que fariam dos alunos indivíduos integrais, senhores das suas próprias escolhas e do próprio processo de formação ? e as outras, as que são úteis ao mercado de trabalho, é inócua, porque não podemos conceber-nos enquanto pessoas independentemente do contexto em que vivemos.
Ou seja, apesar de nunca como hoje a determinação económica ser tão restritiva, ao mesmo tempo ela proporciona uma ampla margem de possibilidades e de potencialidades de acção.

O António Magalhães e o Stephen Stoer referem-se também à ideia de escola reclamada ? essencialmente associada à nova classe média ? como um factor de redefinição do conceito e da dimensão da escola pública. Em que pressupostos se baseia esta redefinição?

Tal como já atrás referi, a escola pública foi concebida pelo Estado moderno como uma forma de desenvolver indivíduos, de formar cidadãos e de preparar trabalhadores. Este é o triplo mandato clássico da educação.
O que está a acontecer, e dizemo-lo baseados na análise de um interessante acervo emergente de fenómenos sociais, é que esta escola, concebida numa lógica vertical, descendente, está a ser questionada pelas formas de cidadania reclamada a partir do local, das identidades de grupo e de pessoas e, até, de estilos de vida. E a nova classe média está a usar particularmente bem este desenvolvimento da escola pública.
O sociólogo da educação Bernstein chamou a atenção para o surgimento em meados do século XX de uma nova classe média que se caracterizaria pelo investimento no capital cultural e escolar ? em detrimento, por exemplo, do investimento na propriedade ? como estratégia de classe. A escola, ao tornar-se numa escola de massas, isto é, numa ?escola para todos?, foi ?invadida? por um novo público que veio pôr em causa a escola como uma forma privilegiada de aceder às suas posições de distinção.
O que é interessante verificar são as estratégias que esta nova classe média utiliza para contestar esta dimensão da escola pública: ou remetendo os filhos para escolas privadas ou assumindo discursos sobre a excelência escolar, dando azo, por exemplo, à publicação de rankings, que, em última análise, deriva do confronto com o acesso das massas à escola pública.

Os conceitos de Estado em rede e de escola reclamada aparecem, na vossa opinião, simultaneamente como um conjunto de ameaças e de oportunidades?

Sim, é essa a ideia que defendemos. Retomando o debate iniciado em 1998 sobre ?Os Filhos de Rousseau?, se, por um lado, se assumia que existia um conjunto de competências ligadas à performance individual, e sobretudo relativas à articulação com o mercado de trabalho, por outro, haveria uma concepção de educação baseada na construção integral do sujeito, esta última defendida sobretudo pelos pedagogos mais ?rousseaunianos?, por assim dizer. As competências, a performance, o desempenho seriam uma injunção ao sistema educativo numa perspectiva mais funcional. Uma perspectiva parece reduzir o indivíduo ao trabalhador pós-fordista, a outra parece entregar o sujeito a si próprio.
Na nossa opinião é pouco rigoroso separar estas duas concepções, porque não há performance sem pedagogia e não há pedagogia sem performance. Estar a conceber um indivíduo desenraizado de todo o contexto que temos vindo a abordar, sobretudo resultante da tal ?glocalização?, é referirmo-nos a um sujeito abstracto, desenraizado, como se de um lado houvesse o capitalismo e as suas exigências e, do outro, o sujeito da educação num enorme vazio social.

?A diferença somos nós?

Num dos artigos que publica regularmente neste jornal na rubrica ?Reconfigurações?, sob o título ?O ?Nós? de ?A Diferença Somos Nós??, refere que ?a reconfiguração das identidades nos actuais contextos sociais (?) afirma que os espaços de relação, onde possamos viver em conjunto, são espaços e tempos em que o conflito não surge como obstáculo à reinvenção das comunidades, mas como o próprio terreno a partir do qual o próprio contrato social é renegociado?. Pode explicar esta ideia?
           
Em última análise, hoje em dia somos todos minoritários. Se até um determinado momento da nossa História havia grupos e instituições que tinham o privilégio epistemológico e sociológico de identificar quem era diferente, e quem era excluído ou incluído, hoje em dia está a surgir uma lógica em que as diversas diferenças questionam este privilégio, isto é, já não existe ninguém, nenhum grupo, nenhuma cultura num lugar epistemologicamente e sociologicamente privilegiado que permita dizer ?tu és diferente? e ?o teu estado de desenvolvimento é tal??. Ora, se este privilégio já não existe, de que forma se identificam as diferenças? Eu próprio sou diferente, isto é, posso dizer que o outro é diferente de mim, mas essa diferença e a minha diferença estabelece-se na própria relação, que pode ser conflitual.
No trabalho que temos vindo a desenvolver sobre este tema, eu e o Stephen Stoer identificamos diferentes modelos de relação com a diferença. Modelos identificáveis no tempo histórico, mas que podem conviver, em simultâneo, como inspiração de políticas sociais.
Consideramos, em primeiro lugar, um modelo etnocêntrico, aquele que vigorou sobretudo até ao século passado, através do qual se determinava, arbitrariamente, quem era diferente. Depois, a sociedade ocidental assumiu, um tanto cristãmente, que os outros tinham de viver connosco e tinham de ser tolerados, num modelo que designamos, por isso, como o da tolerância. Estes dois modelos estão na origem de muitas políticas sociais, e nomeadamente das educativas, do Estado moderno.
O terceiro modelo seria o da generosidade, isto é, na verdade o problema dos ?outros?, e os ?outros? como problema, foi algo criado por nós, sociedades ocidentais, por isso somos nós ? em consciência culpada ? que, providencialmente, devemos deles cuidar. O multiculturalismo crítico, por exemplo, pode encontrar aqui o seu lugar.
O último modelo que identificamos é o modelo relacional, isto é, a minha diferença estabelece-se a partir da diferença do outro, e esta dimensão está presente na ontologia social a que eu já me referi na metáfora do bazar. Concluindo, é um conflito no sentido em que somos todos minoritários.
O nosso trabalho consistirá, daqui para a frente, em saber como pode funcionar este modelo enquanto grelha analítica e ? e isso seria desafiante ? como base de novas perspectivação de políticas sociais e educativas.

A propósito dessa ideia de inclusão pela diferença, o mercado, nas suas diferentes facetas, parece ser cada vez mais o agente definidor de inclusão e de exclusão, substituindo dessa forma as funções do Estado nação e o seu paradigma de protecção social?

Sim, mas também podemos analisar essa questão de uma outra perspectiva. Até muito recentemente, as formas de inclusão eram baseadas naquilo que possuíamos em comum ? ou porque éramos todos seguidores de um mesmo deus ou porque éramos todos cidadãos de um mesmo Estado, partilhando, nomeadamente, uma cultura ou uma língua.
A inclusão através do mercado parece agora querer unir-nos na nossa qualidade de consumidores. Quando há pouco se referiam os contextos de ameaça e de oportunidade, também aqui nos podemos confrontar acerca de como é que nos poderemos repensar como agentes activos da nossa própria inclusão.
E de novo não poderemos colocar, de uma forma metafísica, de um lado, o mercado, que é global e que vive nas bolsas e nos centros de decisão económica, crescentemente mais fluidos e desterritorializados, e, do outro lado, as nossas vidas, os nossos gestos mínimos, a nossa liberdade e a nossa autonomia. É nestes contextos complexos que vivemos e não é possível separar estas duas dimensões, não sendo sociologicamente interessante reconstruir dicotomias estéreis e atávicas.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

António Magalhães
Professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto, investigador do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES).
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
António Magalhães
Professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto, investigador do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES).
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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