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No dealbar da era pós-genómica - I

Depois de um longo percurso com um perfil essencialmente descritivo, obscurecida pelos sucessos da química e da física na definição das leis fundamentais da natureza, eis que a Biologia conseguiu não só encontrar um conjunto de princípios básicos que regem o funcionamento de todos os seres vivos, como também aplicá-los de forma produtiva

Nos meus últimos artigos terá ficado aparente a facilidade com que conseguimos hoje manipular os genes de qualquer organismo. Foi esta revolução tecnológica que catapultou a Biologia para a frente das ciências de maior impacto social e económico. Depois de um longo percurso com um perfil essencialmente descritivo, obscurecida pelos sucessos da química e da física na definição das leis fundamentais da natureza, eis que a Biologia conseguiu não só encontrar um conjunto de princípios básicos que regem o funcionamento de todos os seres vivos, como também aplicá-los de forma produtiva. O passo fundamental foi a compreensão da natureza molecular daquela essência que, de maneira tão evidente, une as várias formas de vida ao longo das suas gerações. A ideia de gene surge pela mão de Gregor Mendel que, ainda no século XIX, percebe que as características hereditárias podem ser entidades discretas e descontínuas, como a cor amarela ou vermelha das flores de uma planta, cujos descendentes nunca exibem tons intermédios. O problema biológico fundamental centra-se, assim, na questão da transmissão de informação e da sua descodificação eficaz a cada nova geração. A descoberta da base molecular universal desta informação - um polímero de ácido deoxirribonucleico (DNA), composto pela repetição de quatro unidades distintas, bases identificadas vulgarmente por A, T, C e G ? e das regras que governam a sua replicação e utilização, transformou a Biologia numa ciência com leis e princípios, passível de um novo tipo de experimentação e, sobretudo, de gerar aplicações importantíssimas como as que temos vindo a abordar.
Sabemos hoje que muito do que somos resulta da combinação precisa destas 4 letras recebida dos nossos pais, organizadas em palavras e frases perfeitamente compreensíveis para as nossas células, que as descodificam a cada instante para se manterem a si próprias, e ao nosso organismo, vivas e perfeitamente funcionais. Quando este texto complexo possui de origem ou adquire erros irreparáveis surgem as deficiências de carácter genético, mais ou menos graves, que podemos reconhecer nas doenças hereditárias, ou no cancro. A percepção da importância da sequência de bases da molécula de DNA deu origem, no início da década de 90, a um projecto, que muitos apelidaram de megalómano, que pretendia determinar a composição e ordem exacta dos 3,2 mil milhões de bases, distribuídos por 23 polímeros distintos (os cromossomas) que constituem o genoma de um Ser Humano. Trata-se do Projecto de Sequenciação do Genoma Humano, levado a bom porto no final de 2001 por um consórcio de entidades públicas de vários países do mundo e, de forma independente, por uma empresa privada.
Eis-nos então na chamada era pós-genómica. Mas afinal, para que serviu sequenciar todo o genoma humano? E o genoma de quem? Que consequências tem este projecto para a vida do cidadão comum?
São estes alguns dos aspectos que irei abordar numa série de artigos dedicada ao tema. Para já, deixo apenas uma nota de interesse: apesar de todas as especulações sobre os abusos e más aplicações que podem advir do conhecimento do nosso genoma e do medo da implantação de uma perspectiva excessivamente genética e determinista do que é um ser humano, os primeiros resultados do Projecto do Genoma Humano deram-nos sobretudo uma lição de humildade e de humanidade. Lição de humildade, ao mostrar que as diferenças entre a espécie humana e outros seres vivos são muito mais reduzidas do que se supunha. O número de genes de um ser humano ficou muito aquém das estimativas ? um escassos 30 mil, que parecem muito pouco quando comparados com os cerca de 15 mil genes de uma mosca. Lição de humanidade, ao salientar a artificialidade dos conceitos de raça e pureza genética, mostrando claramente que as diferenças genéticas entre dois indivíduos da mesma população são superiores às diferenças encontradas na comparação das características genéticas de populações diferentes.


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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