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Professor, evidentemente!

Andando a passear as prestações do carro junto à praia, o professor ouviu, num som difuso de domingo entre frangos de futebol e ondas do mar, a ministra da educação dizer que sempre pensara trabalhar até aos setenta. ?Eh valente!?-pensou lá com o fecho éclair do casaquito acabadinho de comprar na feira de Custóias; e ainda olhou para uma pequena nuvem negra que persistia em permanecer no horizonte desde que o novo governo tomara posse, para acrescentar lá por dentro da alma: ?Quem me dera!?.
E recordou, por instantes, a sua carreira de professor: os mais de vinte anos até conseguir efectivar, os saltos de escola em escola ano após ano, as aldeias onde a pobreza morava e Cristo não passava, as escolas sem quaisquer condições para humanos; e os filhos em casa a pedir as mesmas roupas que os dos seus colegas engenheiros, os mesmos carros que os dos seus camaradas jornalistas, as mesmas férias que os dos seus amigos advogados ? tudo gente (ainda por cima!) do seu nível sócio-cultural. Isto já para não falar nas doenças, nas operações que nem sempre puderam ser feitas nos hospitais privados, nos aparelhos dos dentes que nem sempre foram os melhores, nos implantes, nas próteses, nos médicos de Londres, nos cães de raça, nas motas de marca.               
Depois refrescou a memória com a ideia de que também a senhora ministra, sendo investigadora e docente do ensino superior, não havia de ser assim muito rica, andando de jipe a levar os filhos ao colégio; sobretudo porque estivera sujeita a uma carreira com prestação de provas públicas, não ganhara dinheiro fácil e rápido nas empresas privadas, ou nas públicas, ou sendo colunista de jornais para dizer o que quer que seja sem qualquer fundamento, ou despejando notícias precipitadas, inventando arrastões ou até sobre a vida das pessoas, para depois poder ter, ?com toda a ética?- quem sabe - a pasta da Defesa, ou outra num qualquer governo. E apreciou mais uma vez a valentia daquela vontade de trabalhar até à jubilação obrigatória. ?Ganda mulher!? ? repensou.
Mas acontece que reviveu, num ápice e sem que de tal se pudesse libertar, as noites, aos milhares, em que permaneceu acordado a pensar nesta criança e naquela e ainda na outra, enfim, as vinte e oito ou mais de trinta que, ao longo de cada um de todos esses anos, como se fossem seus filhos, lhe foram aparecendo diante dos olhos estupefactos: órfãs, esfomeadas, doentes, rotas, abandonadas, violadas, prostituídas. Reviu os anos de desgaste psíquico a acompanhar crianças e adolescentes, mesmo que não fossem vítimas de problemas sociais: viver os seus problemas, interiorizá-los para os resolver, ajudar as famílias, os vizinhos, os outros professores. Todas as profissões têm as suas dificuldades, é bom de ver; e quando se quer ser honesto e coerente, nem tudo é fácil. Mas isto, este envolvimento inquietante em cada segundo de um ano lectivo, talvez a senhora ministra não tivesse tido. Nem os advogados. Nem os jornalistas. Nem os engenheiros. Nem outros que tal. Ninguém sabe o que é: só os professores e talvez os psiquiatras.
E foi assim que dos olhos metidos em covas profundamente desgastadas contemplou o seu corpo quase esgotado e se interrogou: ?Até aos setenta?! Agora que, com quase trinta anos de serviço, consegui estabilizar, arranjar um apartamento cá na terra, onde sempre quis morar, criar os filhos com a mão de Deus por baixo, ganhar razoavelmente (mas não tanto como dizem, só o máximo possível, no 10º escalão: trezentos e oitenta contos, líquidos, o que é bem bom), enfim, sobreviver, vêm-me ?oferecer? este emprego até aos setenta? Como é que eu aguento? Que vou fazer? Coitados dos alunos! Pobre país...?.
E regressado pela enorme fila de milhares de prestações assentes em quatro rodas, na estrada que conduz a milhões de outras prestações nas casas de toda a gente, o professor ainda chegou a tempo de ouvir um debate sobre a situação em Portugal (um sociólogo e político, um advogado, um jornalista e um professor de Direito). E mais uma vez a grande desgraça em Portugal chama-se: Educação. E os responsáveis são (rufem os tambores!) os? os?. os?  professores! Acertou! Muito bem!
À noite, na cama, quando o sono não vinha porque nada disto traz sossego, o professor ainda se preocupou com este país onde agora toda a gente se lembrou que está tudo mal. Tudo longe dos objectivos da Comunidade Europeia, distante do sonho de um Mundo Renovado que ele próprio procurou desde 1974. Que, afinal, o que alguns fizeram foi continuar ? apesar da mudança ? a política do salve-se quem puder, do ?desenrasco os meus? que os outros logo se vê, do fechar os olhos ao que está mal porque não é comigo, do não saber sequer que eu sou Estado e aquele jardim foi erigido com o meu dinheiro. E, mesmo a adormecer, no limbo que nos separa já da realidade, o nosso professor ainda revisitou imagens de milhões de contos (ainda era em escudos!...) gastos em formação ?contínua? de professores que logo no ano seguinte se reformaram, ou de docentes a completarem licenciaturas, para poderem todos ascender a um escalão superior na sua aposentação; e também lhe passou pelas brasas uma vaga ideia de que muito desse dinheiro tinha servido o interesse de Escolas Profissionais que quase não existiam; ainda teve visões confusas do cofre do Estado a fornecer milhões para Escolas Privadas de todos os níveis de ensino, enquanto a Escola Pública se ia degradando, ano após ano.
Pegava já no sono quando se lembrou que, afinal, todo esse dinheiro investido de que agora pediam contas não estava nem nos bolsos da maior parte dos professores, nem nos de alguns jornalistas sérios, nem do seu velho colega de liceu, agora advogado, nem sequer nos de meia dúzia de políticos. E assim adormeceu profundamente.
No dia seguinte, de manhãzinha, acordou cheio de vontade de trabalhar até aos setenta, ou mais, se puder ser! Avaliação dos docentes e das escolas? Sem sombra de dúvidas! Mas feita como deve ser, com formação centrada no trabalho que efectivamente se realiza no quotidiano de um estabelecimento de ensino. E o mesmo para juízes, polícias, deputados, jornalistas, advogados, militares, etc. Claro!
?Ainda havemos de ser um país às direitas (ou às esquerdas?) quando alguém for capaz de descobrir em que bolsos andam esses milhões que vieram da Europa e não só, nos últimos quinze anos, para engrandecer Portugal. Muitos deles pertença da Escola Pública. Ainda há-de haver professores competentes para mostrarem as verdades e o rigor!? ? o homem aí estava: reconciliava-se com o seu percurso de sempre, isto é, a luta de todos esses anos por um país melhor.
O homem aí estava: Professor, evidentemente!


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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