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É preciso ?sair do armário?*

HOMOSSEXUAIS PORTUGUESES REIVINDICAM PLENA IGUALDADE DE DIREITOS

De um tema tabu escondido em muitos ?armários? pessoais, a homossexualidade passou a ser uma questão abertamente discutida na sociedade ocidental. Muitos países, sobretudo na Europa e na América do Norte, têm criado leis que garantem o reconhecimento de direitos e a igualdade de tratamento perante o Estado. 
Aqui ao lado, em Espanha, o governo socialista adoptou no mês passado legislação que permite aos homossexuais não só casarem-se pelo registo civil como terem direito a adoptar crianças, sendo considerada, a par da holandesa e da belga, a mais avançada do mundo em termos de garantias dos direitos desta minoria.
Em Portugal, e apesar de a Constituição da República proibir, desde o ano passado, a discriminação com base na orientação sexual, os homossexuais continuam a sentir-se cidadãos de segunda e afirmam que esse princípio ?está estabelecido, mas não está garantido?. Além disso, querem também ver reconhecido o direito ao casamento civil e à adopção de crianças.
A PÁGINA procura neste dossier trazer algumas pistas para um debate que se adivinha próximo e que irá com toda a certeza dividir a sociedade portuguesa.

A negação do reconhecimento

Tão antiga como a Humanidade, a homossexualidade aparece descrita pela primeira vez através do Épico de Gilgamesh, um poema babilónio datado do segundo período do Império Assírio, por volta de 2000 a.C. Gilgamesh é um rei que, guiado pela interpretação de um sonho onde um homem muito forte cai sobre si, se une a um companheiro para governar com mais sabedoria e guerrear com maior destreza. Conta a história que os dois homens, unidos, passaram a vencer batalhas, monstros e obstáculos impossíveis.
Contrariamente aos assírios, os hebreus defendiam que um homem não se devia deitar com outro homem por ofender os desígnios de Deus. A pena reservada aos concubinos era a lapidação até à morte.
Também os muçulmanos, nos contos das ?Mil e uma Noites?, referem-se a relações homossexuais, enfatizando descrições da beleza dos rapazes e de relações lésbicas entre mulheres. Existem também referências a práticas homossexuais no antigo oriente, nomeadamente na Índia e no Japão, países onde as religiões ali implantadas não condenavam a homossexualidade.
O investigador inglês Kenneth J. Dover, autor do estudo "Homossexualidade Grega", demonstrou que a sociedade grega era também favorável ao  relacionamento entre dois  homens, tendo esta prática, inclusivamente, um carácter institucional. A sociedade romana também tolerava relações homossexuais, mas a partir do quarto século da era cristã (342 d.C.) o Imperador Constantino proibiu-as sob pena de morte.
Se a antiguidade fica marcada por uma certa tolerância face às relações entre pessoas do mesmo sexo, a Idade Média, guiada pelo cristianismo ? e este sob os pilares do judaísmo ?, assiste à perseguição dos homossexuais, tidos como graves pecadores, condenados à prisão, à tortura e à fogueira. Tais práticas só viriam a ser abolidas pelo Renascimento.
A chegada do século XX assiste ao aparecimento de inúmeras teses e tentativas de explicação científica das origens da homossexualidade. Apesar de a proibição das relações entre pessoas do mesmo sexo estar prevista na lei de muitos países, despontava um movimento homossexual embrionário. Na Europa já eram vistas revistas dirigidas ao público homossexual e certos locais públicos eram abertamente frequentados pelos mais vanguardistas.
A revolução sexual dos anos 60 trouxe consigo novos horizontes à auto-determinação desta minoria. Na década de 70 surge nos Estados Unidos um movimento homossexual organizado, apoiado por meios de comunicação social e defensores teóricos e políticos, que conquista mais direitos e reconhecimento social do que em qualquer outro momento da história.
Este período de emancipação viria, nos anos 80, a sofrer um retrocesso pelo aparecimento da SIDA. Quando o vírus surgiu ficou associado a uma doença própria dos homossexuais, por ter sido nesta comunidade que apareceram as primeiras vítimas. Não se tardaria a perceber que essa ideia era infundada. Hoje, o HIV dissemina-se sobretudo entre os heterossexuais e é entre estes que a taxa de contágio é mais elevada. Actualmente, em todo mundo, calcula-se que os homossexuais representem entre 5 e 8 por cento do total da população.

A negação do desejo

A expressão da homossexualidade humana, em particular nas sociedades contemporâneas, tem sido objecto de preconceito, variando apenas de intensidade de acordo com as épocas e as correntes de pensamento, e considerada como um ?comportamento desviante?, uma ?anomalia?, um ?vício? ou uma forma de ?pecado?.
No Ocidente, a doutrina naturalista, que defende a heterossexualidade como a única forma da sexualidade humana produzida pela natureza, está ligada à história do cristianismo, embora a negação relativamente ao prazer, incluindo o sexual, derivem do judaísmo e da sua condenação moral à sexualidade sem fins reprodutivos.
Fruto deste pensamento heterossexista, procurou-se desde o início da era moderna encontrar as ?causas da homossexualidade?, tentando relacioná-la com causas biológicas (disfunção hormonal), psicológicas (traumas infantis) ou sociais (isolamento, ausência feminina).
No entanto, é hoje relativamente consensual que a homossexualidade deriva da mesma fonte da heterossexualidade ou da bissexualidade, isto é, da escolha inconsciente do objecto de desejo. Um dos grandes impulsionadores desta ideia foi Freud, defendendo que no tocante ao desejo não há causas mais legítimas que outras. E, enquanto desejo, ele existe legitimamente como um direito.
A importância desta teorização de Freud contribuiu para ?desnaturalizar? a sexualidade humana, demonstrando que todas as escolhas sexuais, como produções do desejo, seguem determinações inconscientes, não havendo, por isso, algo a que se possa chamar sexualidade ?normal? ou ?natural?. Sendo a pulsão sexual humana orientada pela diversidade e parcialidade, a sexualidade entre os seres humanos perverte a natureza reprodutiva do sexo animal.
Convergindo para a mesma compreensão da sexualidade humana que se elaborou na psicanálise, a antropologia demonstra que a sexualidade humana é uma construção social e histórica que segue os padrões culturais de cada sistema social, com os efeitos de sujeição e dominação que isso implica.
Apesar dos contributos científicos trazidas por estas e outras áreas do saber no sentido de compreender e desmistificar a homossexualidade, e de a Organização Mundial da Saúde tê-la retirado, há mais de dez anos, da Classificação Internacional de Doenças, o facto é que a intolerância baseada num preconceito ancestral faz ainda com que muitos homossexuais continuem excluídos da plena cidadania.
Em muitos países, especialmente na Europa, têm-se registado avanços significativos no que se refere à aquisição dos seus direitos de cidadania, nomeadamente o alargamento do casamento civil e o direito de adopção de crianças, como são o exemplo da Holanda, Bélgica, Suécia e, mais recentemente, a Espanha. Desde o ano passado, as lésbicas suecas podem também recorrer à inseminação artificial e à fecundação ?in vitro?, sendo-lhes reconhecida a maternidade.
Também no ano passado, o Parlamento Federal alemão aprovou uma modificação do código civil beneficiando os casais do mesmo sexo inscritos no regime de união civil, autorizando a adopção das crianças do respectivo parceiro. A Hungria poderá também vir a adoptar, até 2007, um sistema de reconhecimento legal da união civil de casais homossexuais, semelhante ao esquema de Parceria Civil em vigor no Reino Unido desde Dezembro de 2004.
Mas não é só na Europa que os direitos dos casais homossexuais têm vindo a ganhar terreno. No Canadá, foi aprovado no ano passado um projecto de lei que autoriza o casamento de casais homossexuais, e nos Estados Unidos, em Novembro de 2003, o Supremo Tribunal do Estado de Massachusetts ordenou às instâncias políticas que alargassem o casamento civil a casais do mesmo sexo.

Portugal: Princípios estabelecidos, mas não garantidos

Em Portugal, os casais homossexuais têm as suas relações reconhecidas pelo Estado desde 2001, através do reconhecimento da união de facto. No entanto, para uma plena equidade de direitos, falta garantir o casamento civil, que especifica um conjunto mais abrangente de direitos e de deveres relativamente à união de facto.
O movimento lésbico, gay, bissexual e transsexual (LGBT) dá os primeiros passos na agenda política portuguesa em 1996. Nessa altura, existiam ainda regulamentos discriminatórios em vários sectores da administração pública e na política de segurança social, remetendo explicitamente a homossexualidade para o campo das doenças mentais.
Em 2004, através da influência exercida pela União Europeia e pelos grupos de defesa dos direitos dos homossexuais, Portugal passa a referir expressamente no artigo 13º da Constituição da República a proibição da discriminação com base na orientação sexual.
A comunidade LGBT portuguesa diz que o princípio legal ficou estabelecido mas que ?ainda não está garantido?. É que, apesar de uma relativa abertura social e de mais pessoas viverem abertamente a sua homossexualidade, a maioria dos regulamentos discriminatórios revogados continua informalmente a ser aplicada, conquistas legais como a união de facto continuam à margem de qualquer regulamentação e certos conceitos legislativos presentes no Código Civil, como a definição de família, continuam a ser considerados segregatórios.
Paralelamente a estas questões, os temas que actualmente mobilizam a comunidade LGBT são a luta pelo direito ao casamento civil ? que dificulta não só a reivindicação de direitos como a mobilidade no espaço europeu, colocando os portugueses em desvantagem face a casais de outras nacionalidades ?, e a impossibilidade de adoptar crianças, clausula que contraria o artigo 13º da Constituição Portuguesa.

Direito de adopção: sim ou não?

Esta última é a que tem provocado mais reacções negativas por parte da sociedade portuguesa, mobilizando tanto a Igreja como conhecidas figuras públicas à esquerda e à direita. Miguel Sousa Tavares, por exemplo, questionava-se, em Março de 2004, na sua crónica semanal no jornal Público, se os homossexuais já teriam visto ?elefantes ?gays? ou focas lésbicas a criarem filhos em comum?, referindo, na sua opinião, ser ?legítimo pedir igualdade de direitos conjugais e sucessórios?, mas não ?aquilo que não é natural e ofende os direitos legítimos de terceiros inocentes?. O actual governo, conotado com uma maior tolerância e disponibilidade política para resolver este tipo de questões, ainda não se pronunciou.
Manuel Cabral Morais, presidente da International Gay and Lesbian Association (ILGA) ? Portugal, lamenta que os grupos parlamentares da Assembleia da República ainda não tenham produzido o entendimento necessário para viabilizar um regime jurídico de adopção que possibilite a casais homossexuais adoptarem crianças e defende este direito à semelhança do que já acontece na vizinha Espanha (ver entrevista na página 37).
Os poucos estudos já realizados por várias universidades e associações científicas como a ?American Psychological Association? e a ?American Academy of Child and Adolescent Psychiatry?, não trouxeram evidências de que o desenvolvimento psicossociológico das crianças educadas em contextos homoparentais seja diferente do de qualquer outra criança.
A mesma opinião tem Maria Emília Costa, psicóloga e professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, que ironiza esta questão afirmando que ?é tão perigoso uma criança ser adoptada por um homossexual ou por um heterossexual, a partir do momento em que não tenha condições para ser pai?.
O argumento da ausência de um modelo masculino e feminino é considerado ilusório por esta psicóloga, a partir do momento em que as crianças não vivem isoladas e o meio lhes serve como modelo. ?A homossexualidade não se transmite pela aprendizagem?, diz. ?O que se transmite pela aprendizagem é a educação para a diferença, mas hoje em dia a tendência é educar-se para a não diferença?.

Nota:
*Expressão utilizada para designar o assumir da homossexualidade


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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