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Crianças desprotegidas e responsabilidades

O processo conhecido por Casa Pia levantou suspeitas sobre tudo e sobre todos e, fundamentalmente, pôs em evidência, a vulnerabilidade das crianças mais desfavorecidas em relação a todo o tipo de abusos.   Problema de todos os tempos, o abuso de crianças, seja qual for a sua índole, assume sempre o contorno de exploração do poderoso sobre o mais fraco. Quer se trate de abuso sexual, maus tratos físicos e psicológicos ou trabalho infantil, estamos perante uma forma de perversidade que evoca a irracionalidade e o que mais há de brutal no homem porque em qualquer juízo que se faça, teremos de subtrair, necessariamente, aquilo que nos diferencia dos animais irracionais: a inteligência e a sensibilidade.
Há já alguns estudos interessantes sobre a criança ao longo dos tempos. A História mostra que a especificidade do "ser criança" se alcança a partir de dois vectores fundamentais: escala social e progresso ao nível dos direitos humanos. No século XVIII, quando da Revolução Industrial, a criança burguesa era já encarada como tal, enquanto os filhos dos operários trabalhavam nas minas de carvão 14 horas seguidas, muitas vezes, até à exaustão. À medida que nos aproximamos do século XX, e sobretudo por força da lenta mas persistente luta pelos direitos do Homem, o "ser criança" assume crescentemente um papel central para as autoridades públicas, quer no que concerne à sua educação e instrução, quer no que se relaciona com a protecção dos jovens mais desfavorecidos.
A Casa Pia, em Portugal, pretende subtrair à rua os jovens sem família, com desígnios mais direccionados para a tranquilidade pública que uma preocupação inata pelos jovens desprotegidos.  No entanto, um projecto deste tipo, desembocaria naturalmente na reabilitação de pequenos delinquentes, pelo que os seus aspectos positivos progrediriam a par de outros bem menos recomendáveis, concretamente o aproveitamento dessas mesmas crianças para trabalhos de toda a ordem, constituindo a Casa Pia, em muitos casos, armazém de recrutamento para todo o tipo de caprichos, quer fosse da parte de senhores precisados de mão de obra a troco de pouco mais que pão e água, ou arregimentados pelo próprio Estado para trabalhos diversos, ou ainda para fins pedófilos, este crime, muito provavelmente, atravessando transversalmente todos os outros.
Em termos de responsabilidade, a Casa Pia tem uma História prenhe de situações obscuras, pelo que a actual posição de queixosa no processo de pedofilia, remete-nos para a fábula  do lobo com pele de cordeiro, sacudindo a água do capote e desresponsabilizando-se face aos jovens que teve  e tem a seu encargo.
Por isto tudo, averiguar com todo o rigor as responsabilidades desta instituição, pugnar para que não se repitam situações deste género, deverá constituir um dos objectivos de qualquer política da Criança da parte do Estado. A este cabe a extrema responsabilidade de velar pelos seus filhos mais desprotegidos, sujeitos à voragem impiedosa da exploração obscena, seja ela de que tipo for.


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Paulo Frederico F. Gonçalves
Professor, Porto
Paulo Frederico F. Gonçalves
Professor, Porto

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