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?Não há nenhum projecto educativo que não possa ser lido numa perspectiva política?

FACE A FACE COM SUSANA RALHA, CO-FUNDADORA DO »BANDO DOS GAMBOZINOS»

O ?Bando dos Gambozinos? é o nome de um jardim-de-infância onde a música, e a expressão artística em geral, tem um lugar preponderante na aprendizagem. Há três anos, esta filosofia de formação foi estendida ao 1º ciclo do ensino básico através da criação da ?escolinha?. Mais do que um local de aprendizagem, os Gambozinos assume-se como um projecto artístico, filosófico e político.
Isto, explica Susana Ralha, co-fundadora e uma das responsáveis dos Gambozinos, porque ?não há nenhum projecto a nível educativo que não possa ser lido numa perspectiva política?. Formada no Conservatório de Música do Porto, onde teve o ?privilégio? de ser acompanhada por professores que a marcaram a si e à música portuguesa, iniciou a sua actividade como docente na cooperativa de ensino particular ?Ludos?, tendo mais tarde estendido o seu percurso ao ensino público como professora e coordenadora de programas de música no ensino básico.
Paralelamente, é autora de repertório musical para a infância e juventude, criado a partir de textos de escritores portugueses, tendo colaborado com a televisão pública e a rádio. Foi também coordenadora do departamento educativo da Casa da Música do Porto entre 1999 e 2004. Nesta entrevista, explica o que faz dos Gambozinos um projecto diferente e qual a sua estratégia de trabalho.

Como nasce o ?Bando dos Gambozinos??

O Bando dos Gambozinos é uma associação cultural formada em 1973 como grupo laboratorial e experimental na área da formação musical, destinado a crianças a partir dos três anos de idade, que oferece, numa lógica integrada, um bloco regular de actividades de formação em diferentes área de expressão. Aqui sempre se entendeu a música como uma componente fundamental na educação de uma criança, mas não pretendemos, apesar disso, que ela se assuma como o início de uma carreira musical.

Porquê essa orientação pedagógica em torno da música?

Porque, na nossa opinião, é indispensável uma formação que consiga proporcionar o equilíbrio entre uma formação artística exigente, com um conceito de percurso ? e não de carreira ? e de instrumentos de avaliação seleccionados, integrada em outras actividades de expressão artística que possam oferecer, no seu conjunto, um desenvolvimento global aos miúdos. E em Portugal não existe uma oferta com estas características, as propostas de ensino que existem são muito formais.

Ou seja, procurar entender a formação artística interdisciplinarmente?

Alguém defendeu uma vez que ?a ciência estuda a diferença, a arte alimenta-se dela?. Eu penso que esta ideia poderia e deveria aplicar-se à educação. Qualquer criança tem capacidade de exprimir o seu património e de nessa expressão construir o seu próprio património. Esse processo está tão intimamente relacionado tal como o corpo do pensamento.
É para dar corpo a este conceito que no Bando dos Gambozinos as actividades não se resumem à música; prolongam-se na expressão plástica, na dança, na expressão dramática, no xadrez e na matemática.
Desde há três anos funciona também a ?escolinha?, um projecto alternativo ao nível do 1º ciclo, com toda a carga curricular inerente ao ensino regular, mas combinada com uma forte componente artística. A escolinha herda não só o material humano acumulado em torno dos Gambozinos (todos os orientadores são profissionais da sua área e professores destas crianças desde o jardim-de-infância), mas sobretudo a estratégia de trabalho em torno da actividade artística que aqui se desenvolveu nas últimas três décadas.

Qual é essa estratégia de trabalho?

Funciona com base em grupos pequenos, onde as crianças, apesar de trabalharem numa lógica de grupo, desenvolvem o seu percurso individualmente. Procura-se, nesta lógica, corresponder a níveis de formação, de aprendizagem e de evolução representados por processos individuais de construção do pensamento e da forma como ele se inscreve na memória de cada um. Enquanto a escola regular procura, nos seus processos, pôr todos a caminhar no mesmo trilho, aqui tenta-se que no trilho individual caiba o espaço para entender o exercício de um trilho colectivo.
Da mesma forma que, ao longo do percurso dos Gambozinos, deixou de fazer sentido a separação entre as diversas áreas artísticas e entre as áreas da expressão e do pensamento, também deixou de fazer sentido distinguir entre o que é a intervenção artística, educativa, ideológica ou política.

É, então, um projecto artístico, político e filosófico?

Sim, porque qualquer projecto na área da educação artística tem de se assumir como tal. Pode não se enunciar, pode não se reflectir sobre ele, mas não há nenhum projecto educativo que não possa ser lido numa perspectiva política. É através desta reflexão, conjunta ? os professores e os pais (que por vezes assumem posições contrárias às nossas) ?, que vamos buscar a qualidade dos questionamentos que vão moldando o nosso percurso. Em Portugal nunca se conseguiu ultrapassar um certo horror ao pensamento, à política, sugerindo, ou condicionando, uma educação para a subordinação.

Poderá ser considerado um projecto inovador, pelo menos a nível nacional?

Em termos de ensino curricular do 1º ciclo, penso que sim. Até porque comporta uma série de ingredientes que não são comuns e se tornam difíceis de concretizar nas escolas do ensino regular, nomeadamente o facto de ter uma componente experimental, característica que não se perdeu desde o seu início.

Esta orientação que tem descrito baseia-se em algum modelo educativo?

Penso que se inspira mais numa convicção do que propriamente num modelo, ou seja, na noção de que a infância é uma fase de altíssimo privilégio, dotada de uma grande capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento da memória, mas também de resistência e de criatividade. E aqui todos os professores têm intuitivamente essa prática e desenvolvem-na num ambiente de afecto mútuo ? não de mimo ? entre miúdos e graúdos.
Fruto deste trabalho e da convicção de que as crianças são sempre capazes de mais ? e julgo que qualquer pessoa poderá constatar isso ? as crianças nos Gambozinos acabam por desenvolver o seu percurso com um estoicismo e uma capacidade de disciplina que dificilmente se encontra em crianças da mesma idade.

Que balanço faz destes 30 anos de actividade?

Costumo dizer que aquilo que mais evolui é a qualidade das perguntas e não tanto a qualidade das respostas. Portugal mudou muito nas últimas décadas, e aquilo que nos parecia fazer sentido há trinta anos, ou mesmo apenas há cinco, já não faz actualmente. As perguntas que nos colocamos hoje são diferentes daquelas que nos colocávamos nessa altura. Ou seja, o Bando dos Gambozinos não é propriamente um projecto pré-definido. Surgiu, e a ele foram-se juntando outras pessoas e outras ideias que lhe foram dando novos rumos.
Outro aspecto que me parece importante referir é o facto de nunca termos tido a tentação de chamarmos educadores àqueles que aqui trabalham, porque eles são, acima de tudo, profissionais das respectivas áreas.
O trabalho na área da música, por exemplo, recorre a compositores e intérpretes, entre outros; o mesmo se passa com a expressão plástica, para a qual convidamos pintores e escultores; ou a escritores, quando abordamos a língua, sem nunca, no entanto, dissociarmos uns dos outros. São eles o nosso património de inspiração. Estas crianças estão habituadas a conviver com referências, o que também traz algumas vantagens em relação a outros contextos de aprendizagem.

Pensa que esta filosofia poderia ser aplicada ao ensino público e trazer vantagens em termos de aprendizagem?

Estou convencida que sim. Paralelamente aos Gambozinos, tenho trabalhado no ensino público ao nível da organização e coordenação de programas artísticos e penso que a falha nesta área se deve não tanto à programação ou ao método, mas à ideologia que está por trás. Com adultos convencidos de que as crianças têm ?limitações?, que há coisas que elas devem perceber e outras não, com adultos que sentem a vida como uma ameaça, sensíveis ao medo e à culpa, não há estratégia que se aproxime da que tenho vindo a defender. Tudo passa pela noção de infância e de juventude, do mundo, da empatia, do que é a construção da tolerância, da cidadania?

Não receia que este tipo de formação desproteja, de certo modo, as crianças quando elas mais tarde ingressarem no ensino regular?

É uma questão que discutimos muito e que na minha opinião, passa também pelo domínio das convicções, enquanto professores e enquanto pais. Pensando que vivemos num mundo profundamente competitivo e injusto, será legítimo que as crianças sejam educadas com base na injustiça para melhor aprenderem a aceitá-la? A nossa convicção é de ser preferível uma criança, numa fase de socialização ainda relativa, ter até aos dez anos uma experiência de robustez e de aprendizagem das diferenças para que o medo e a culpa não se apoderem dela quando vai para outra escola. É uma questão de leitura do mundo que determina a nossa intervenção nele. Não é um mundo perfeito, pelo que temos de nos questionar onde podemos ser úteis e onde podemos ajudar a construí-lo.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Susana Ralha

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Susana Ralha

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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