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O sofrimento da escrita e outras coisas

Quase sempre solitário, o sofrimento da escrita não pode, (?) tolher os passos e as autorias, sobretudo porque ele deve constituir-se não como um obstáculo psicológico intransponível mas como um processo mobilizador e auto-reflexivo de desenvolvimento pessoal, cívico e científico.

Entre nós (mas certamente também em muitos outros contextos), dada a persistente configuração da comunidade das ciências da educação, sabemos quais são os autores de referência ? conhecidos, aliás, não apenas pelos seus méritos como pesquisadores como também pela excelência (formal, metodológica e de conteúdo) dos textos que produzem e, não raras vezes, também, felizmente, pela sua pertinência política e cívica. São, todavia, menos do que desejaríamos, acontecendo mesmo que, ao contrário do que seria de esperar, não raras vezes mantêm alguma (excessiva) contenção ou escrúpulo relativamente ao que escrevem e ao que publicam. Por outro lado, e com alguma frequência, saem a lume livros ou artigos em revistas que se assumem como sendo "científicos" mas que, na realidade, constituem trabalhos apressados e mal escritos, superficiais sob o ponto de vista teórico e conceptual, escassamente fundamentados sob o ponto de vista metodológico e sem grande pertinência científica e/ou pedagógica. Presumo que os autores destes últimos trabalhos não sofrem a escrever ou não sabem o que é o sofrimento da escrita. Talvez ingenuamente, ou com ignorante e mal disfarçada arrogância, nem sequer desconfiam do que escrevem. Isto é, a reflexividade que julgam produzir ou induzir é para os outros; nunca, ou raramente, para eles próprios.
Todos nós conhecemos e sabemos nomear autores cujos trabalhos de referência marcaram e continuam a marcar o campo científico e pedagógico e, alguns deles, referindo-se à sua própria experiência, confessam abertamente que o processo da escrita contém sempre uma grande dose de sofrimento. A experiência do sofrimento da escrita acontece também com todos aqueles que não tendo qualquer responsabilidade institucional, ou sendo ainda ténue a sua visibilidade social e académica, assumem, apesar disso, um salutar compromisso com a busca de rigor conceptual e metodológico ? o qual me parece ser, aliás, um dos mais eficazes antídotos aos ataques que se dirigem, com alguma frequência, e quase sempre em termos genéricos e levianos, ao campo vasto e heterogéneo da Educação. Parece-me, por isso, urgente tornar mais densa a reflexividade crítica e analítica no campo da Educação.
O sofrimento da escrita não redime as falhas, e não evita as incertezas e as ambiguidades previsíveis, mas torna certamente mais aguda a responsabilidade (social, ética, política, científica e pedagógica) da escrita académica no campo da Educação, e esta contribui certamente para a consecução de outros padrões de rigor, consistência e pertinência ? os quais, em qualquer caso, beneficiando a própria construção e consolidação do campo científico e pedagógico em que os trabalhos se inscrevem, podem continuar a constituir um referencial para outros pesquisadores e, pelo menos de forma não intencional, podem também estimular os autores mais novos a prosseguir e aperfeiçoar o ofício da escrita.
Quase sempre solitário, o sofrimento da escrita não pode, por isso, tolher os passos e as autorias, sobretudo porque ele deve constituir-se não como um obstáculo psicológico intransponível mas como um processo mobilizador e auto-reflexivo de desenvolvimento pessoal, cívico e científico. Sendo a escrita, como eu a entendo, um trabalho de artesão, ela não pode senão expressar a consciência mais ampla e lúcida que está, justamente, nos antípodas da alienação. Talvez por isso não seja absolutamente necessário que ocorra o sofrimento da escrita.
O que não podemos em qualquer caso evitar é que a escrita deixe de ser um testemunho para os outros. A este propósito, Pierre Bourdieu, no seu excelente Esboço para uma Auto-análise (Lisboa, Edições 70, 2005, p. 119), escreveu: "Nada me tornaria mais feliz do que ter conseguido que alguns dos meus leitores e leitoras reconhecessem as suas experiências, as suas dificuldades, as suas interrogações, os seus sofrimentos, etc., nos meus e que desta identificação realista, que é completamente distinta de uma projecção exaltada, todos retirassem meios para fazer e viver um pouco melhor tanto aquilo que vivem como aquilo que fazem" (sublinhado meu).


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho

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