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A propósito do horror às regalias e privilégios

COMENTÁRIO A UM TEXTO DE UM «FAST-THINKER» DA NOSSA COMUNICAÇÃO SOCIAL

Nos últimos tempos você parece-me uma barata tonta americana, daquelas gordas que voam à toa e se emaranham nos nossos cabelos sem de lá querem sair. Os seus textos são uma síntese do que os seus colegas de ofício dizem e publicam. Por isso escolho um texto seu para comentar, ao correr das teclas do computador e ao ritmo de quem se prepara para fruir o privilégio  do intervalo grande de Verão. Aproveito o espaço da página quatro ? que as férias de Verão deixaram livre ? e alongo-me um pouco mais nestas notas que lhe deixo.

  1. Começo por lhe dizer que quando o oiço ou leio percebo com facilidade onde lhe dói. Você clama contra as regalias e privilégios dos que você apelida de «populares» mas ai de quem lhe toque, mesmo que com uma flor, num dos seus muitos privilégios e regalias.
    É um facto, em Portugal a sua opinião conta. E isso é terrível porque você emite opiniões sem medir as razões que as sustentam. Custa-me dizer-lhe, mas você constrói opinião com base em palpites, em suposições, em ideias feitas e preconceitos. Por isso você me parece um «fast-thinker», um «penso rápido» da comunicação social. Você é socialmente perigoso. Em vez de ajudar a curar você infecta as feridas.
  2. No seu discurso, escrito e falado, confunde conceitos como privilégios, regalias, direitos adquiridos, direitos contratuais, conquistas da revolução. Reduz estes conceitos tão diversos a uma mesma coisa. Tal confusão leva-o a cometer erros de apreciação e a cometer injustiças em relação a milhares de pessoas.
    Estes conceitos, quando se aplicam, não se aplicam só ao sector público mas também ao sector privado. É tão privilegiado o indivíduo que arranja um emprego no sector público à custa duma cunha como o que arranja emprego no sector privado com a mesma cunha. E, tendo em conta as médias de remuneração do trabalho em Portugal, é tão privilegiado o indivíduo que obtém rendimentos acima dos dez mil euros por mês no sector público como o é o que os obtém no sector privado. Porventura os dois rendimentos são legais e  legítimos mas não deixam de ser um privilégio seja ele obtido no público ou no privado.
  3. Em relação aos privilégios você e eu próprio, somos porventura cidadãos socialmente privilegiados. Cada um de nós nasceu onde nasceu, tivemos o pai e a mãe que tivemos e certamente que não teríamos o privilégio de viver como vivemos e de pensar como pensamos se tivéssemos nascido numa família desestruturada do bairro do Cerco do Porto ou no Casal Ventoso. Não sei como é que você se considera, mas eu considero-me um privilegiado o que me faz olhar os menos afortunados com um respeito acrescido e uma vontade acrescida de me bater civicamente para que possam, também eles, ter uma vida um pouco melhor do que aquela que têm.  É até essa uma razão porque me custa ler algumas das coisas que você agora escreve. Julgo que elas magoam quem não deviam magoar. E, permita que lhe diga, a meu ver, são demasiado violentas e intolerantes.
  4. Diz o Dicionário da Academia que regalias, para além dos direitos próprios da realeza, são «privilégios ou vantagens de uma pessoa ou grupo social inerentes à actividade profissional». Tenho por isso dificuldade em aceitar o discurso que o leva a meter no mesmo saco os magalas da GNR ou da armada, os banqueiros, os lixeiros, os policias, os professores, as empregadas de limpeza, os juízes, os porteiros, os directores, os motoristas dos senhores, os administradores do Banco de Portugal ou da banca privada, os autarcas e outros que tais.
    Se queremos emitir opinião pública sobre estes casos julgo mais prudente informarmo-nos com rigor sobre o que se passa com cada um destes grupos profissionais. Tenhamos pelo menos em conta que os rendimentos dos trabalhadores mais pobres continuam a ser miseráveis mesmo com as «regalias» que o incomodam.
  5. Num seu texto, você compara «direitos adquiridos» com «Conquistas da Revolução». E você odeia as «Conquistas da Revolução». Considero a comparação má pelo menos no sentido em que você a coloca. De facto existiram e existem «Conquistas da Revolução». Como existem conquistas da Revolução Francesa, da Revolução Americana, da civilização chinesa, da nossa 1.ª República ou antes disso da nossa Revolução Liberal. Os povos, através de alguns actos colectivos, uma vez por outra, fazem de facto conquistas civilizacionais. Não fora assim e continuávamos nómadas a peregrinar de caverna em caverna. Também no dia a dia, por acções menos emblemáticas se fazem tais conquistas. E assim como umas se ganham, outras se perdem. É também por isso que a humanidade se civiliza de forma tão vagarosa.  Mas é também por isso que, de forma tranquila, os povos se livram dos erros que individual ou colectivamente cometem. (Se bem que o que é erro para mim possa não o ser para si e vice-versa, mas isso é bom para dar algum sal à sociedade).
    Aceitemos então que houve e há «Conquistas da Revolução [de Abril]». Dependendo do que cada um de nós quer para a sociedade, haverá de certo «conquistas» que cada um deseja que terminem e outras que cada um quer que se perpetuem. Na minha opinião o Serviço Nacional de Saúde, o ensino e a educação para todos ? não só a escolar mas também a social ?, o subsídio de férias ou o 13.º mês, o direito a 22 dias por ano de liberdade [férias] face ao trabalho escravo, os direitos sindicais e muitas pequenas-grandes coisas são «direitos adquiridos» que eu considero «direitos de civilização», e não privilégios e, por isso, gostaria que se mantivessem. Receio que a nossa elite política, gestora e jornalística, entenda que tudo isto deve desaparecer e que saudável é a instauração de uma civilização pré-clássica. Temo o regresso do mercado de escravos, agora etiquetados com certificados de mérito e de demérito e código de barras em nome da competitividade e da concorrência internacional? Receio pelos netos.
  6. Ainda sobre os «direitos adquiridos» talvez seja de evitar confundi-los com «direitos contratuais». Certamente que você já estabeleceu na sua vida ? eu também o fiz bastas vezes ? contratos de trabalho. Estes contratos consagram direitos e deveres das partes. Têm prazos, mais curtos ou mais longos, alguns podem até ser por 30, 36 ou 40 anos, mas são prazos e são contratos. O seu contrato com o jornal em que publica o seu texto dá-lhe certamente direitos. Também consagra obrigações das duas partes. Não vejo em que diferem os contratos que eu estabeleço com o Estado, daqueles que você celebra com os seus patrões. Porque é que os seus direitos são direitos e os meus se transmudam em privilégios?
    Não sei se sabe mas os trabalhadores da administração pública têm contratos colectivos celebrados com a sua entidade patronal. Esses contratos têm clausulas de revisão. Não são eternos. Podem [e julgo que devem] ser renegociados nos termos que eles mesmo definem. O que me parece incorrecto é confundir «direitos contratuais» com «privilégios» [aparentemente produzidos e defendidos por ladrões ou forças demoníacas e anti-sociais].
    Podemos discordar dos contratos desta ou daquela pessoa, deste ou daquele grupo profissional, seja no sector público seja no privado. Podemos defender a revisão de tais contratos e a sua alteração. O que não me parece civilizado é quebrar unilateralmente contratos e, pior ainda, considerando «crápula» a parte sacrificada pelo acto unilateral.
    Sendo o senhor uma figura pública e vendo-o eu a desempenhar várias funções ? certamente remuneradas ? será que isso me dá o direito de o apontar como um  «privilegiado» ou mesmo «um vigarista social», um obstáculo ao desenvolvimento e à resolução dos nossos problemas nacionais? Não me parece justo. Considero antes que o senhor tem direito a ter o que conseguiu conquistar com o seu trabalho e o seu engenho. Ingenuamente gostaria que também as minhas «conquistas» e os meus «direitos adquiridos», os meus «direitos contratuais» fossem respeitados. Claro que aceito que quem os negociou comigo os queira denunciar e renegociar. Não vem daí nenhum mal ao mundo desde que cada uma das partes reconheça à outra o direito de aceitar ou rejeitar as propostas. E desde que todos aceitem que cada um tem o direito de usar o poder democrático que tem para fazer valer os seus pontos de vista e os seus interesses. Afinal, é esse o jogo que se joga nas sociedades democráticas e que eu defendo.
    Não aceito é que a sociedade a que pertenço seja arbitrariamente dividida entre uma minoria que se arroga o direito de se organizar e decidir o presente e o futuro de todos e nega à maioria o direito de usar as suas forças e influência, e de se organizar, no sentido de influenciar a sociedade e decidir, o mais possível, sobre a sua própria vida.
  7. Em Portugal, progressivamente, a população tem vindo a ser condicionada por uma certa elite mediática. Dispor de meios de comunicação para condicionar a opinião pública é, esse sim, um grande privilégio. Ter acesso a um órgão de comunicação não é um privilégio ilegítimo, mas pela importância social, política e cultural que tem, julgo que obriga essa elite privilegiada a exercer as suas prerrogativas com sentido de responsabilidade e a máxima competência.
  8. Como você sabe, Portugal é um país pequeno. E, desgraça maior, fica nos arrabaldes da Europa. Não somos África, nem Europa. Temos um atraso que vem dos descobrimentos e da expulsão dos judeus. Depois disso não produzimos uma burguesia a sério. Tivemos uma nobreza que se quis comerciante e, mais tarde, uma burguesia que se quis nobre, e ainda hoje se pensa nobilitada. Depois se sermos um país  de nobres-mercadores somos agora um país de burgueses-doutores.
    Vivemos primeiro da Índia, depois do Brasil, mais tarde da África e agora da União Europeia. Como referi em editorial anterior, não são os trabalhadores portugueses que têm demasiados direitos, o que continuamos a não ter é uma burguesia empresarial capaz de promover a produção de riqueza que permita ao país viver com um mínimo de decência europeia. Por isso discordo de si, e dos seus colegas comentadores, quando pensam resolver tudo  amaldiçoando o sector público e abençoando o sector privado. O problema não está ai. Discordo da vossa perspectiva sobre as nacionalizações e privatizações. Estas estão na base do impasse em que nos encontramos. As privatizações absorveram, desde o Cavaquismo, as poucas energias e o pouco capital português disponível.
    A nossa burguesia, reforçada pela que veio das colónias, é comerciante e sempre olhou de esguelha e com desconfiança a indústria. Sempre vivemos do comércio e dos serviços, sustentados do que vinha de fora, incluindo as famosas remessas dos imigrantes. Se nós somos isto, e ainda não fomos capazes de ser outra coisa, porque cair na ingenuidade de encontrar nos trabalhadores da administração pública o bode expiatório para o problema que não fomos capazes de resolver em mais de quinhentos anos? Porque não olhamos para o que somos e não nos deixamos de preconceitos e de ideias feitas? Porque não nos analisamos sem culpa, sem necessidade de nos desprezarmos uns aos outros? Porque temos de nos odiar afogados no lodaçal da nossa própria miséria? Porque não partimos para outro destino a partir do que somos e do que sabemos e podemos fazer? Porque não aprendemos a fazer coisas novas? Porque fugimos à nossa fraqueza e ignoramos a nossa força? Porque é que cada um de nós parece querer fugir de si próprio?
    Como podem os meus alunos continuar a respeitar-me se em casa, à mesa do jantar os pais, ou vocês na rádio e na televisão, lhe dizem que sendo eu professor, funcionário público, sou um patife, um ladrão, um facínora, a ruína do país, a causa do desgosto e da raiva do pai, da mãe do avô e do tio? Como posso continuar a ensinar? Porque assassinam traiçoeiramente, dia a dia, a minha credibilidade e respeitabilidade, elementos indispensáveis no meu trabalho?
  9. Os seus textos e discursos têm o mérito de nos incomodar e de nos fazer sentir vontade de abandonar tudo e partir. Partir.  Sobretudo para nos libertarmos deste ambiente sórdido. Velhaco. Invejoso. Maledicente. Manhoso. Provinciano, alimentado por inteligências que se pensam superiores e da maior cultura e entendimento mas que na realidade são agarotadas, diletantes e se convidam, entre risos nervosos de adolescentes, umas às outras, para participarem na dança provinciana, da nossa pobre  e rasca comunicação social.
  10. Referindo-se explicitamente aos professores, diz você que «gostaria de poder continuar a ter uma boa recordação do meu velho professor primário» e acrescenta «estranho o facto de hoje eles não aceitarem ser primários e exigirem ser tratados por professores do 1.º ciclo».
    É típica essa condescendência, dos bem instalados na vida, em relação ao seu «velho professor primário». Mas dou-lhe alguma razão quando estranha que alguns não se sintam bem na pele de professores primários. Por comodidade de análise eu distingo o professor primário do professor do 1.º ciclo. O professor primário foi, simbolicamente, uma referência cívica e cultural da comunidade onde exerceu a sua actividade. Tivemos na nossa história bons e péssimos professores primários. Simbolicamente eles foram ? alguns, tanto novos como velhos, ainda conseguem ser ? um pilar das comunidades rurais e urbanas.
    A explosão escolar. O recrutamento em massa. A ausência de uma política de fixação dos professores nas comunidades e escolas. A ideia neoliberal de que o emprego precário é mais motivador. Tudo isso e outros factores têm empurrado os professores para outra coisa. A essa coisa eu aceito que ? para não ferir o primário ? se chame professor do 1.º ciclo. Este, simbolicamente, é um professor tecnocrata. Ensina mais do que educa. Está disponível para aceitar gestores profissionais. Não se bate pelo exercício autónomo e responsável da profissão. Aceita ser mandado, vigiado, avaliado,  classificado, catalogado, premiado ou condenado. Está disponível para ensinar de acordo com as ordens e a vontade e os critérios dos pais, dos autarcas ou do senhor Alberto João Jardim. Não adquiriu ou já esqueceu a ética profissional. Em lugar de cultivar um pensamento ético prefere o regulamento de disciplina imposto pelo gestor, o pai, a ordem, o ministério ou o autarca. Numa palavra, perdeu a noção de escola, de cultura de escola, de professor e de cultura de professor.
    Mas, meu caro comentador, não avalie nem julgue os professores pelos seus critérios do passado. Meta na cabeça uma vez por todas, a escola em que você foi ensinado já não existe. Morreu. E a responsabilidade por ela já não existir não é dos professores, é da vida, do desenvolvimento da ciência e tecnologia, da economia, da cultura, da dinâmica própria das sociedades, da mudança social, da história.
    Ensinar hoje nada tem a ver com esse passado que você guarda na memória. A ciência já não é a do Iluminismo. Produz-se de outra maneira e a outro ritmo. Os alunos são todos os que acedem à escola e não apenas uma elite filtrada à entrada da primária e decantada de ciclo em ciclo como se do fabrico de uma aguardente se tratasse. Ensinar hoje exige mais dos professores porque é preciso que o acto educativo seja cada vez mais simples e, como se sabe, para chegar à simplicidade é preciso trabalhar muito.
    E com esta ideia termino a carta que vai longa e maçadora em demasia. Não é só no ensino que para se chegar à simplicidade é preciso trabalhar muito. Também o é na comunicação social. A não ser que se queira ser um iluminado, um privilegiado, nada mais.

  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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