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Festivais de cinema contra a globalização?

É absolutamente necessário, obrigatório mesmo, ler as palavras de dois dos maiores realizadores contemporâneos, Abbas Kiarostami e Edward Yang, publicadas nos Cahiers du Cinéma de Maio: podem ser violentas, incorrectas, mas reflectem a brutalidade das roturas com a sociedade e com os seus concidadãos, que ambos conhecem, e vivem, como a maioria dos cineastas ambiciosos. São palavras que falam da esperança, a raiar o desespero, de poder trabalhar  num outro contexto, de outros olhares, de outros caminhos.
Kiarostami começa a sua fala referindo: ?Não sou um teórico. Para falar da minha experiência, creio que a minha carreira  de realizador teria sido interrompida após o meu segundo ou terceiro filme se os festivais de cinema não existissem.
De facto, os festivais colmataram a falta de espectadores, isto é, dos espectadores que apenas gostam do chamado cinema maioritário e não são capazes de entrar numa sala para descobrir um cinema diferente. O reconhecimento que recebi nos festivais tornou-se a única razão que me permitiu continuar a fazer filmes. O cinema vulgar não tem necessidade de qualquer consagração. Para o bem e para o mal esse tipo de cinema tem um grande apoio do público por todo o mundo. Os que estão habituados à mediocridade dos programas de televisão levam o seu gosto para as salas de cinema e gostam de ver filmes vulgares e medíocres.
Se se considera o cinema como uma indústria, dever-se-ia admitir que os melhores defensores do cinema são os que pagam para ver tais filmes, mesmo se a realidade é que os produtores privam o público de toda a possibilidade de evoluir.
É preciso realçar que todos os cineastas independentes esperam que os festivais apoiem as suas investigações e a sua originalidade. É inútil dizer que estes cineastas perdem público na proporção directa da novidade e da audácia dos seus filmes. Mas recebem o apoio dos festivais, que até se torna na razão principal para continuarem a filmar.
Os efeitos de Cannes, por exemplo, na minha carreira não foram significativos no Irão. Tal explica-se pelos consideráveis mal-entendidos e suspeitas que daí resultaram. Ao governo e a muitos intelectuais e críticos custou-lhes entender que um filme de que não tinham gostado tivesse sido premiado num festival como o de Cannes. Por isso, tornei-me um suspeito no meu país. E, no seguimento desta lógica, nenhum dos meus filmes seguintes foi distribuído no Irão. É um facto que um filme reconhecido em Cannes e  que ganha a Palma d?Ouro, pode atrair a atenção do público e fazer mais espectadores. ?O Gosto da Cereja?, que recebeu esse prémio, teve muito mais espectadores que ?Através das Oliveiras?, que não recebeu nenhum.
Não nos devemos preocupar com o público normal, todos os anos são feitas, para ele, toneladas de filmes. Os produtores enriquecem com este género de filmes, que deixa o cérebro morto e o espírito vazio. (?) Os realizadores ambiciosos não deveriam preocupar-se em fazer filmes para o grande público. Em que nome o devem fazer? Todos os problemas e infelicidades que temos neste mundo horrível vêem deste ?grande público?. A maioria esmaga os direitos da minoria. Nós, os artistas, somos a minoria.
(?)
Por sua vez Edward Yang diz:
?Conheço festivais locais, regionais, festivais criados por motivos políticos, turísticos... Mas a maior parte têm por objectivo promover a qualidade dos filmes em todo o mundo. Enquanto os poderosos produtores de super produções  utilizam meios enormes para promover os seus produtos, os festivais são essenciais para chamar a atenção dos espectadores para os filmes de qualidade. De outra forma, os distribuidores não indicariam ao cimo dos cartazes que o filme ganhou tal e tal prémio em tal e tal festival
Pensa que existe uma categoria de pessoas que se etiqueta de ?verdadeiros espectadores?? Isso é ridículo. Era a mesma coisa que chamar ?verdadeiros viajantes? aos turistas que andam a pé à volta da Torre Eiffel. Pensa realmente que eles conhecem o verdadeiro prazer da viagem? Ouvi muitas vezes pessoas do campo, que gostam de participar em turismo de grupo, declarar que ?estouraram? rios de dinheiro em Paris, uma cidade ?velhota?, com ?edifícios arcaicos? e nada de moderno. É esse tipo de gente o ?verdadeiro espectador?? Pensa que os milhões de pessoas que se aglomeram todos os dias no McDonald?s são os ?verdadeiros espectadores?? Pensa que os administradores do McDonald?s são melhores homens de negócios que os que gerem os grandes restaurantes com ?chefs? de qualidade e um bom serviço? Simples questão de bom senso comercial: há sempre uma procura de produtos de boa qualidade. Se os festivais são o lugar que oferece o reconhecimento aos bons produtos, porque não fazer bons filmes para eles??
É um paradoxo terrível. Os que fizeram dos festivais lugares não só de referência artística, mas também  económica e mediática, são hoje ameaçados. Estes sonhadores cinéfilos, que nunca se interessaram por fazer sombra aos homens do poder, suscitam-lhes invejas e ciúmes. (?) Em apenas alguns meses, três dos melhores festivais internacionais foram decapitados, por decisão política, e sob pressão das indústrias nacionais.
Em Outubro, Quentin, o fogoso director do Festival de Buenos Aires, foi expulso como um mendigo pelo adjunto da Cultura da Câmara  Municipal, de quem depende o festival. Foi pela sua preferência por bons filmes, viessem de onde viessem, contra os interesses locais, que o director do Bafici se tornou alvo da ira dos responsáveis económicos do cinema argentino.
Em Janeiro, foi a vez de Kim Hong-joon, o director do Festival Puchon, na Coreia. Ele também vítima da sua preferência por obras, em vez dos produtos que a indústria local deseja promover. Igualmente na Coreia, existem responsáveis locais que se deixam seduzir pelo discurso do chamado ?grande público? .
No 1º de Abril - não é mentira, não- desta vez foi a direita recentemente chegada ao poder na Grécia que demitiu o presidente e o director do Festival de Tessalónica, respectivamente, o maior realizador do país, Theo Angelopoulos, e um dos melhores programadores em actividade, Michel Demopoulos. Para evitar dúvidas, a nova directora é uma produtora, fenómeno absolutamente inédito na história dos festivais. Esperemos que estes consigam sobreviver ... para que viva a diferença!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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