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Os portugueses têm medo de existir?

Como muitos  leitores que quiseram saber o que o prestigiado filósofo José Gil dizia, no seu livro já distinguido com várias e sucessivas edições, "Portugal, Hoje - O Medo de Existir", a respeito dos portugueses, não resisti à mesma curiosidade, mas desde   logo pontuando-a com interrogações que só teriam completa resposta depois de ter ouvido uma boa parte da entrevista que José Gil concedeu a Maria João Avilez, no seu programa da televisão.
À partida, eram interrogações que se fundavam em saber se o autor se reportaria aos portugueses como um todo homogéneo,  distinguindo ou não os trasmontanos (das serranias) dos alentejanos (das planícies);  os cerca  de  quatro milhões  que, sendo hoje jurídica e/ou culturalmente portugueses,  vivem fora do país  de origem; o mais de um milhão dos  que, aqui residindo hoje, passaram ou viveram durante largo tempo nas colónias de África; enfim, se seriam distinguidos  os portugueses que nunca saíram do ninho  europeu (ou se apenas saíram em vilegiatura), por fixação à sua aldeia, cidade, contingência ou  filosofia de vida, dos que, por espírito de aventura ou por "não caberem no berço" (na expressão de Torga), se lançaram nos muitos caminhos do mundo em busca de outros horizontes.
E interrogações, finalmente, sobre se o tal  medo de existir no Portugal de hoje correspondia a uma pretensa falta de ousadia e ausência de auto-estima, que ultimamente se fez moda agitar ora como estímulo, ora como espantalho (sendo, portanto,  pecha conjuntural); ou se, longe disso, era sintoma de uma persistente patologia nacional que vinha de antiquíssimos tempos, quiçá da mistura dos genes herdados dos vários povos que galgaram  serras,  mares e continentes  para largarem o ovo donde nasceria a portugalidade (ou o ethos) que alguns estudiosos consideram atravessada  pelo queixume e a melancolia.
Fiquei tranquilo quando li que o Salazarismo fora, afinal, o berço do suposto medo de existir dos portugueses, em Portugal e agora, e com a resposta que José Gil deu à pergunta da entrevistadora sobre se esse medo não teria razões históricas, bem mais profundas do que aquelas que se inscreveram no tempo da Ditadura. A resposta foi a de que a análise se circunscrevia ao presente e que o filósofo não pretendia substituir o  historiador.
Embora lamentando que o filósofo não tivesse ousado "imiscuir-se" nas áreas da história, da etnologia, da antropologia cultural e até da biogenética para "especular" sobre a "psicologia do medo" português, fiquei ainda mais tranquilo quando concluí estarem limpos do estigma aqueles nossos antepassados que foram além do Bojador e da Dor e, "lançados" afoitamente na Aventura fora do Berço, abriram novos  caminhos no Mundo (uns bons, outros maus), arvorando as Bandeiras das épocas (umas  gloriosas, outras   nem tanto), antecipando como a Ciência, a Técnica e o Progresso podem chocar ovos donde sai o Bem e o Mal - em qualquer caso, e apesar dos Adamastores e dos Naufrágios, peregrinando como o velho Fernão Mendes Pinto nos mares revoltos da China e investindo como os novos Atlantistas nas praias edénicas de Fortaleza,  encandeados por uma Luz que teve vários nomes (Fortuna, Cobiça, Ambição, Desafio, Fé), só experimentaram o primeiro Medo colectivo quando, já esquecidos dos milhares de mortos e estropiados  da Grande Guerra de 1914-18, sentiram que morriam na última Guerra Colonial  sem glória  nem proveito.              
Completamente tranquilo, se pode dizer-se, me senti ao ler na última página que José Gil "procurou apenas desenterrar alguns estratos que perduram na sociedade contemporânea portuguesa" e que "o tema não é 'Portugal', claro, mas um ou dois aspectos dessa entidade vasta, só possível de abordar, aliás, por um número muito limitado de perspectivas."
Assim, remetido a um confortável  "estado de alma", fruto de uma  indelével relação com inúmeros  portugueses que, em estranhos solos e sob diversos sóis, sem medos nem queixumes, de calção e peito nú, tremendo de paludismo, comendo mandioca e carne seca, mas mantendo uma elevada auto-estima, rasgaram caminhos nas florestas, assorearam pântanos, regularam caudais, construiram açudes,  irrigaram desertos, combateram epidemias  e modernizaram cidades-capitais em apenas vinte anos - tenho de pensar que por tais provas de audácia e auto-estima estes mesmos portugueses (ou portugueses-outros?) não podem ser avaliados por igual  àqueles  que têm "medo" de um futuro sem Milagres nem Salvadores que os livrem da pobreza, fechados  à ideia de que  só a imaginação, a sensatez, o esforço, o sacrifício, a moderação e a ousadia  poderão substituir a pimenta da Índia, o ouro do Brasil,  os escravos de África e, agora, as "minas"  falaciosas da União Europeia.


  
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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