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EUTANÁSIA: Homicídio qualificado ou suicídio assistido? O tabu da "morte tranquila"

Muito recentemente, os portugueses tiveram oportunidade de assistir nas salas de cinema a um filme que mostra como a vida ? por vezes desafortunadamente ? se pode tornar dramática ao ponto de não desejarmos prolongar a existência.
O filme ?Mar Adentro?, do realizador espanhol Alejandro Amenábar, retrata a condição humana de um homem tetraplégico que, após 28 anos preso dentro de si mesmo, decide pôr termo à vida. A história de Ramón Sampedro, o marinheiro galego, já correu mundo e tornou-se numa espécie de símbolo daqueles que defendem que a vida nem sempre tem de ser vivida até ao fim da nossa existência biológica.
A eutanásia é uma questão extremamente controversa e tem dividido tanto a sociedade civil como a classe médica ao longo da história. Desde o início da medicina moderna que os médicos tiveram de se confrontar com pacientes que, vítimas de males incuráveis ou de situações limite de dor, pediam assistência para antecipar a sua própria morte.
O termo Eutanásia provém do grego e etimologicamente significa "morte doce" ou "morte tranquila". Como conceito, designa uma acção ou uma omissão que, pela sua natureza, ou pelo menos na intenção, procura a morte com o objectivo de eliminar a dor física ou psicológica, estando habitualmente associada a doentes que sofrem de doenças terminais, que se encontram em situação de morte cerebral ou de imobilidade total e na dependência de terceiros. Na sua forma prática, é o processo através do qual alguém causa deliberadamente a morte de outra a pedido desta última.
O termo eutanásia tem um alcance amplo e pode ter diferentes interpretações (ver ?dicionário de termos?). Um dos primeiros a defendê-la  foi o médico e filósofo inglês Francis Bacon, que, em 1623, na sua obra ?Historia vitae et mortis?, defendia ser ?desejável que os médicos desenvolvessem a arte de ajudar os agonizantes a sair deste mundo com mais doçura e serenidade?.  
Quando se aborda a eutanásia há que ter em conta a intencionalidade e o efeito da sua acção, que define o âmbito activo ou passivo da sua prática. Assim, a eutanásia é considerada activa quando se administra uma substância que provoca directamente a morte do doente, e passiva quando é efectuada através de uma omissão, isto é, quando um profissional de saúde deixa de prescrever um determinado medicamento que sabe resultar na morte do doente. Do ponto de vista da ética médica, considera-se que não existe diferença entre ambas.
O suicídio assistido é uma terceira forma de eutanásia e verifica-se quando um médico ou outra pessoa fornece ao doente a substância que lhe irá causar a morte, sem, no entanto, participar directamente na acção.

Os médicos, a igreja e o movimento pró-eutanásia

Em Portugal, a eutanásia é pouco debatida e parece mesmo estar coberta sob um véu de silêncio, não existindo qualquer levantamento exaustivo sobre o número de pedidos e que possa determinar, ao certo, qual a posição dos portugueses face a esta matéria.
Para saber a posição oficial dos médicos portugueses, a PÁGINA dirigiu por escrito um pedido à Ordem dos Médicos no sentido de esta instituição se pronunciar sobre esta matéria, tendo aguardado durante duas semanas por uma resposta que, no entanto, nunca chegou à redacção. Sendo assim, tivemos de nos guiar pelo Código Deontológico destes profissionais de saúde, onde se pode ler no ponto 2 do artigo 47º que ?constituem falta deontológica grave quer a prática do aborto quer a prática da eutanásia?. Porém, no ponto 4 do mesmo artigo, refere-se que ?não é (...) considerada Eutanásia, para efeitos do presente artigo, a abstenção de qualquer terapêutica não iniciada, quando tal resulte de opção livre e consciente do doente ou do seu representante legal?.
Desde 1987, a Associação Médica Mundial, através da Declaração de Madrid, considera a eutanásia como um ?procedimento eticamente inadequado?. Contrariamente à legalidade da Eutanásia pronunciaram-se igualmente diversas organizações de saúde mundiais e a Assembleia do Conselho da Europa através da recomendação 779/1976 sobre o direito dos doentes e moribundos. Mais recentemente, o Comité de Bioética do Conselho da Europa, em apreciação da Lei holandesa que autoriza a eutanásia, considerou que a eutanásia não só é ?moralmente condenável, como juridicamente inaceitável?.
Uma das áreas da medicina que maior crescimento tem conhecido é a dos tratamentos paliativos. Trata-se de uma especialidade médica em muitos países, como é o caso da Inglaterra, onde existe há mais de dez anos, sendo exercida não só por médicos, mas também por assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros. Em Portugal existem seis unidades de cuidados paliativos, número que, no entanto, é considerado insuficiente para fazer face às necessidades (ver entrevista com Edna Gonçalves na página 37).
À semelhança das organizações de saúde, a igreja católica mostra-se também contrária à prática da eutanásia, alegando argumentos como o reconhecimento sagrado da vida e o primado do indivíduo sobre a sociedade. Mas nem todas as igrejas têm a mesma postura. A igreja calvinista, por exemplo, mostrou-se recentemente a favor da sua prática em condições muito específicas.
Outros, porém, defendem que ?a vida é um direito e não uma obrigação?, como referiu Ramón Sampedro no seu pedido de morte antecipada a um tribunal espanhol.
É o caso, entre outros, da Federação Mundial de Associações pelo Direito a uma Morte Digna, que agrupa 37 organizações provenientes de 22 países. Esta federação foi fundada em 1980 e defende que cada indivíduo tem o direito a tomar as suas próprias decisões sobre a forma e o momento adequado para a sua morte. Cada uma das associações trabalha com objectivos distintos, em função do contexto legislativo do país de origem. Assim, se algumas procuram divulgar a possibilidade de deixar em vida testamentos onde se preveja a eutanásia, outras centram-se na tarefa de obter o direito legal a ajuda médica no momento da morte, seja por suicídio assistido ou através de eutanásia voluntária. 

A eutanásia no mundo e na Europa

O problema da eutanásia não se limita aos aspectos éticos, morais e filosóficos do doente, do seu direito à autodeterminação ou a uma morte digna, à ética que rege a actuação dos profissionais de saúde, mas sobretudo com questões de ordem jurídica que, conforme veremos, podem variar de país para país.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, existe o chamado testamento biológico (?Living will?), que exprime a negação  tratamento terapêutico e o desejo de morrer com dignidade. A Califórnia foi o primeiro Estado americano a legalizar o testamento biológico, em 1976. Para ser considerado válido, o diagnóstico tem ser confirmado por dois médicos, entrando em vigor duas semanas depois e sendo válido por cinco anos.
O Tribunal Constitucional Federal americano admite a possibilidade de cada Estado poder legislar nesta matéria. O Estado do Oregon foi o primeiro a legislar sobre esta matéria e permite, desde 1997, o suicídio assistido do ponto de vista estritamente legal. Um estudo realizado em 1998 neste país apurou que cerca de 3 % dos médicos já tinha prescrito uma medicação letal a pedido do doente.
Na Europa, pelo menos três países têm legislação que regulamenta esta prática. Na Holanda, talvez o caso mais paradigmático, a eutanásia é tolerada desde há cerca de cinquenta anos, mas só em Novembro de 2000 o parlamento aprovou legislação que a legaliza, tendo-se tornado o primeiro país do mundo a fazê-lo.
Os médicos têm de obedecer a regras rigorosas para praticar a eutanásia e o processo é acompanhado por comissões a nível regional, integradas por um médico, um jurista e um especialista em ética, encarregadas de o fiscalizar. A lei prevê igualmente que os menores de idade, entre os 12 e os 16 anos, possam também recorrer a este procedimento desde que tenham o consentimento dos pais. Segundo a nova lei, a eutanásia só poderá ser realizada por médicos que acompanhem de perto a saúde dos seus doentes .
Em Setembro de 2002, a Bélgica passou a ser o segundo país do mundo a despenalizar a eutanásia, sendo possível aos médicos belgas terem acesso nas farmácias a medicamentos e utensílios necessários para praticá-la.
De acordo com a legislação, apenas estes profissionais de saúde podem encomendar o conjunto de apetrechos, que custa aproximadamente 60 euros, e o seu levantamento tem de ser feito pessoalmente nas 24 horas seguintes à encomenda.
Cada um dos conjuntos contém um relaxante muscular, injectáveis utilizados para anestesiar os doentes e um livro de instruções, permitindo ao doente realizar a morte assistida em sua casa. Depois de utilizarem o kit, os médicos são obrigados a devolver os medicamentos e os utensílios não utilizados na operação.
Na Suíça, o suicídio assistido é tolerado e está previsto na lei. Existe uma organização oficialmente reconhecida, denominada ?Exit?, que conta com cerca de 60 mil associados, cujo âmbito de actuação  é o de prestar assistência ao doente que requeira a morte assistida. Ali próximo, na Áustria, existia uma lei que regulamentava o suicídio assistido mas foi revogada em 1997.
Em Portugal a lei não prevê nenhuma das formas de eutanásia atrás referidas e o código penal considera a morte induzida ou o suicídio assistido como homicídio qualificado, não havendo qualquer caso de jurisprudência nesta matéria. No entanto, este é um debate que, mais tarde ou mais cedo, terá lugar na sociedade portuguesa.


  
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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