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Conhecer o passado (conclusão)

Temos vindo a discutir ? ver crónicas anteriores em http://www.apagina.pt/arquivo/Ficha de Autor.asp?ID=706 ?  alguns problemas que põe o conhecimento do «passado», do ponto de vista de um arqueólogo.

O processo auto-crítico que tenho vindo a expor procura, superando a primeira modernidade, muitas vezes assertiva ou dogmática, corresponder a um amadurecimento da nossa própria cultura, que se torna mais atenta ao outro, à relatividade/efemeridade dos conceitos, à pluralidade dos valores e das soluções que os seres humanos inventaram para viver.
Nesse sentido, aprofunda ou radicaliza tendências antigas, mas que, a partir de determinada escala, se tornam de natureza diferente ? a reflexividade, a atenção à variabilidade, à diferença, e portanto um certo relativismo, são hoje a própria condição para nos estabelecermos num terreno de racionalidade e de criatividade, de avanço, de produção de valor. Hoje, mais do que nunca, o conhecimento postula, a montante da acumulação de observações, uma interrogação sobre os seus princípios, o seu questionário, a razão de ser dessas próprias interrogações, a pertinência dos conceitos e da rede de concepções de que descola. Começar a observar e a interpretar sem questionar as próprias bases em que assentam tais observações e interpretações, é um acto absurdo e um desperdício gravíssimo de energia.
Esta consciência pressupõe um certo conhecimento antropológico, geográfico, geo-estratégico, do planeta, hoje todo articulado pelas comunicações, e não é indiferente ao sistema financeiro actual (capitalismo desorganizado, no dizxer de Scott Lash), baseado na grande mobilidade, na adaptabilidade, flexibilidade e numa predisposição constante para a inovação (sentido de risco).
Sabemos bem que a economia do conhecimento e a economia ?tout court? não são, nem nunca foram, campos herméticos, mas estão em manifesta inter-relação.
É certo que aquele ?sentido de risco? conceptual começa também a contaminar as ?ciências sociais e humanas?, e portanto a academia, mas só de um modo muito mais lento, porque há ainda formas de resistência que vêem num saber estático ? tradicionalmente apresentado como neutral, objectivo, apolítico, visando encontrar a ?verdade?, movido pela curiosidade desinteressada - a condição da sua sobrevivência. Essa perspectiva, hoje, ou é inocente, ou é hipócrita.
A ciência e o saber não estão fora deste mundo e dos seus jogos de forças, não são uma teologia atemporal. Quem os quer apresentar como tais pretende apenas assegurar, na prática, a manutenção de efeitos retóricos de sustentação da autoridade indiscutida e indiscutível, logo não contestável.
Essas pessoas parecem esquecer (ou querer-nos ocultar) o mais essencial: que, desde que a contestação da própria existência de Deus se tornou possível no horizonte dos pensáveis ? abrindo o caminho à laicidade ? então tudo se tornou virtualmente ou realmente contestável.
O conhecimento é um recurso que mobiliza recursos, que custa tempo e dinheiro, e que visa provocar efeitos. Sendo a sociedade heterogénea, organizada em grupos de interesses divergentes, em convivência tensional, o mais provável é que convivam, nela, diferentes maneiras de produzir conhecimentos, diferentes economias do conhecimento a tentar afirmar-se, conhecimentos ao serviço de causas diferentes e, por vezes até, concorrentes ou adversárias.
O saber não é um campo angélico: é, até certo ponto, produto da ?depuração? de experiências e de objectivos, é a formalização de estratégias, de interesses, muito diversos. Mas todos eles constituindo, na sua heterogeneidade, partes de um ?campo de forças? que, embora em mutação, embora com propostas muito divergentes, tende a ser aspirado por este ?efeito de real? que é dado pela economia e por todos os outros sub-sistemas de criação de valor que interagem complexamente no mundo globalizado contemporâneo.
Certas margens provocam por vezes efeitos retóricos de diferença, propostas de ruptura, mas acabam perversamente por re-equilibrar o sistema e perpetuá-lo, porque o ?main stream? não poderia existir, precisamente, sem essas margens, que vivem na ilusão de estar fora do sistema, ilusão sustentada pelo seu caracter minoritário e portanto por nunca terem de administrar nada, na prática, a não ser a lógica da sua contestação.
Trata-se de posições confortáveis, estéticas, com grande eco precisamente nas faixas etárias ou sociais que ainda não estão, ou já não estão, ou nunca irão estar, na verdadeira administração da ?vida real? (jovens, velhos, excluídos ou marginados). Temos de evitar a atracção fatal desse efeito de falar das margens para as margens, enquanto o sistema, incólume, passa, se quisermos criar valor alternativo.
Uma arqueologia pré-histórica, diferente daquela que habitualmente se pratica e lê, passa também muito por aqui.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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