Manuel Pinto, director do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, defende que
O consumo de televisão em Portugal é um dos maiores da União Europeia. Habitualmente reconhecida como um poderoso instrumento de socialização das crianças e dos jovens, a televisão é, no entanto, apenas um dos muitos meios de comunicação que preenche o nosso dia-a-dia e, inevitavelmente, o do quotidiano escolar. Neste sentido, que papel deve ter a escola na formação e interpretação dos conteúdos mediáticos? Para responder a esta e outras questões entrevistamos Manuel Pinto, professor associado da Universidade do Minho (UM) e Director do Departamento de Ciências da Comunicação desta universidade. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, Manuel Pinto foi jornalista de "O Jornal de Notícias" entre 1980 e 1988, do qual é actualmente Provedor do Leitor, e fundador e docente da Escola Superior de Jornalismo do Porto. Os seus interesses de investigação centram-se no jornalismo, na sociologia da comunicação e dos media e na educação para os media, áreas que, a par da Educação para a Comunicação Social, já teve oportunidade de leccionar. Dos seus livros mais recentes, destaque para "A Comunicação e os media em Portugal 1995-1999", sob a chancela da UM, e "A televisão no quotidiano das crianças", das Edições Afrontamento, ambos publicados em 2000.
Como caracterizaria o consumo televisivo dos portugueses? O que dizem as estatísticas?
Os dados actuais apontam Portugal como um dos países com maior índice de consumo televisivo na União Europeia, com uma média de três, quatro horas por habitante. No entanto, quando se analisam estes dados há que ter em atenção o comportamento das franjas etárias. Assim, e ao contrário do que se poderá pensar, são os idosos aqueles que passam mais horas em frente ao ecrã de televisão ? o que diz muito da situação da terceira idade em Portugal. No grupo etário infantil verificam-se assimetrias assinaláveis, que podem variar entre uma média de seis/ sete horas diárias e de meia hora ou uma hora.
É um dado relativamente adquirido que a televisão exerce um papel socializador nas crianças e nos jovens. Até que ponto considera verdadeira esta afirmação?
Eu distinguiria nessa análise as crianças até aos 12/15 anos e os jovens, já que os estudos indicam que quando os miúdos começam a ganhar alguma autonomia no seu quotidiano o consumo televisivo decresce e reestrutura-se o uso dos meios de comunicação social, com a rádio, e a música em geral, a ocupar um maior espaço, característica que se mantém nos anos posteriores.
O consumo televisivo tem tido nos últimos anos a concorrência de outros meios, como o telemóvel e o computador. Estaremos perante uma geração e uma cultura do ecrã? Não estarão eles a substituir a própria televisão como espaço de socialização?
Sim, aos quais acrescentaria os jogos de vídeo e de consola, um fenómeno que, na minha opinião, tem inclusivamente uma maior importância do que a televisão nesse processo. Os jogos conquistaram um espaço e um tempo significativos na vida das crianças e dos jovens e não podem ser encarados apenas como um entretenimento, possuindo conteúdos e narrativas que, do ponto de vista da socialização e dos valores, mereciam maior atenção do que alguns géneros de consumo televisivo. Quanto ao telemóvel, ele é claramente uma ferramenta que serve cada vez menos o seu objectivo primário, multiplicando-se em usos e funcionalidades ? como o acesso à Internet ou aos jogos interactivos ? que estamos ainda longe de conhecer na totalidade, e julgo que as funções de interacção social cada vez mais tenderão a estar polarizados no telemóvel. Essa ideia da geração do ecrã é um fenómeno que tem uma correspondência real e nós deveríamos olhar com maior atenção para os contextos e os sujeitos da recepção e das práticas desse tipo de meios.
Pensa que a exclusão da televisão do quotidiano das crianças e dos jovens poderá colocar hoje problemas de integração social?
Conheço experiências, em vários países, de comunidades, com um contexto social muito concreto e onde coexistem outras formas de interacção social, onde essa opção foi tomada, podendo ser concebível e suportável. Em sociedades como a nossa, onde não ter acesso à televisão é um facto excepcional, julgo que seria bastante problemático, já que actualmente, para o bem e para o mal, a televisão fornece os referenciais para a interacção social em muitas dimensões da nossa vida, que está relativamente dependente dessa presença, dos seus conteúdos e das suas linguagens. Julgo é que poderia incorporar-se essa dimensão na educação das gerações mais novas de uma forma diferente.
Tendo em conta a importância da televisão na formação pessoal dos mais novos, não terá o serviço público uma responsabilidade acrescida na formação de públicos?
Sim. Pessoalmente, acredito que o serviço público de televisão tem sentido e que é importante lutar por ele. Apesar de se verificar uma estratégia no sentido de denegri-lo e contribuir, de alguma forma, para a sua indiferenciação e mesmo para a sua extinção, é indispensável lutar por um espaço que se afirme pela diferença, em particular no segmento das camadas mais jovens. Na minha opinião deveria haver uma resposta específica para estes públicos, através de formatos específicos a ele dirigidos e com outros critérios que não a maximização de audiências. De resto, temos assistido a um decréscimo dos espaços para os mais pequenos nas televisões generalistas privadas, porque estas têm a preocupação de maximizar a audiência e de não segmentar a grelha de programação. Neste sentido, é necessário salientar o esforço que tem sido feito pela Rádio Televisão Portuguesa, através do segundo canal, que tem revelado alguma preocupação pela qualidade e inclusivamente tem optado por colocar programação para os mais novos em espaços alternativos e até em horário nobre.
Conhece exemplos na Europa que mereçam ser referidos?
Eu creio que tanto a França como a Inglaterra são exemplos de países que têm feito uma aposta forte nesse terreno. O mesmo se pode dizer da Itália, apesar de nos últimos anos se ter assistido a alguma crise no panorama televisivo. Em Espanha a situação chegou a atingir um cenário de alguma gravidade, em que o sector público não se distinguia da lógica do sector privado. O actual governo, porém, parece querer contrariar esta situação e tem procurado junto dos diferentes operadores, públicos e privados, estabelecer um código de conduta que impeça certos limiares de serem sistematicamente ultrapassados.
A formação para os media e a escola
Partindo do seu conhecimento nesta área, que mudanças previsíveis antevê para a comunicação social nos próximos tempos, tendo em conta, nomeadamente, que a publicidade determina de forma crescente os conteúdos?
Esses problemas são amplos e complexos, mas julgo que um dos fenómenos que valerá a pena analisar, tendo em conta o que se tem passado nos últimos anos, é a tendência para a hibridação de géneros. Isto, porque aquilo que no passado eram géneros perfeitamente definidos ? como a informação, a ficção, o espectáculo, a publicidade ?, com regras e códigos específicos, tem vindo a dar lugar àquilo a que chamaria uma ?contaminação? de géneros. Assim, a lógica do entretenimento e do espectáculo contaminam progressivamente a informação, zonas cinzentas entre a ficção e a informação ganham uma crescente expressão, a publicidade tira cada vez mais partido da lógica da informação, e vice-versa, etc. Este é um fenómeno novo, do qual ainda não existe uma percepção global e aprofundada, que convém continuar a acompanhar. Outro campo onde estão a ocorrer mudanças profundas, e que irão alterar radicalmente a configuração geral deste sector a que podemos chamar media ? que também já começa a sofrer de uma hibridação com as telecomunicações e a informática, e aí também estamos a assistir a novidades importantes ? é a emergência de formas de auto-edição, ou seja, ferramentas que abrem a possibilidade ao comum dos cidadãos, individualmente ou em grupo, de disponibilizarem espaços na Internet de onde emergem fenómenos interessantes, que poderão estar a sinalizar novos caminhos para os media clássicos e para o próprio jornalismo. Estas mudanças irão com certeza colocar novos desafios aos media clássicos, que tenderão ou a incorporar esses novos meios, tirando partido deles, ou eventualmente a reestruturar esses meios tal como os conhecemos hoje.
Considera que a televisão pode ser uma aliada ou uma inimiga da escola?
Tenho dificuldade em responder de uma forma simplista a essa questão, porque julgo que a televisão é uma realidade autónoma da escola, que marca cada vez mais as últimas gerações, e que, provavelmente sob a forma pela qual hoje a conhecemos ou recombinada, pensada e programada de outras formas, continua e continuará a ser uma realidade que deve ser pensada autonomamente em relação à escola. Mas uma vez que ocupa um lugar tão relevante no quotidiano das pessoas, e em particular dos mais novos, julgo que a escola dificilmente lhe poderá fugir, quer tentando compreendê-la como um acto cultural, que pode ser cultivado e qualificado ? e a escola deve jogar um papel nessa qualificação ?, quer encarando-a como um elemento contaminador da lógica da própria escola. É aí que se levantam-se problemas complicados para os professores e educadores, que muitas vezes não sabem em que medida hão-de educar de forma não antagónica ao universo televisivo.
Mas ela reforça ou contraria os conhecimentos da escola?
A primeira questão que devemos ter em atenção é o facto de a oferta televisiva não ser uma realidade homogénea. E se existem programas que, pela sua lógica, contrariarão a lógica da escola e o tipo de aprendizagens que ela potencia, haverá outros que abrem horizontes e que podem funcionar como complemento, e muitas vezes até como substituto, das lacunas da formação escolar. A escola tem de ter em conta esta diversidade de abordagens e procurar valorizá-las no seu interior. Neste sentido, é importante ajudar os professores e os pais a lidar com esta nova realidade, porque a sensação que perpassa é que os mais novos se sentem mais à vontade com os media e com as novas tecnologias e que os professores quase se demitem de os abordar. Mas a escola não se pode demitir da abordagem dos media na sua tarefa educativa.
Mas para isso seria necessário que os professores tivessem, na sua formação inicial, uma componente de formação na área da interpretação dos conteúdos televisivos?
Sim, e acrescentaria também da imagem, já que o universo do multimédia, no qual a imagem tem um papel decisivo, necessita de uma abordagem mais incisiva, porque não se pode ter um olhar crítico e exercer a própria cidadania e os direitos individuais e colectivos face aos meios de comunicação, e em particular à televisão, sem ter consciência de como a comunicação se processa, procurando compreender a gramática da imagem e a forma como ela é trabalhada a nível mediático.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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