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João Paulo II

Saberia João Paulo então que um Papa Paulo tinha sido o fundador dum gueto para os judeus? Na própria Roma papal? Saberia ele que outros Papas, quatro séculos de Papas, não apenas preservaram esse gueto, mas também instituíram outros semelhantes em quase toda a Itália? Saberia ele que foi preciso esperar que toda a Europa acabasse com os seus guetos para finalmente acabar-se o de Roma?

João Paulo II morreu.
Tinha dois nomes, João e Paulo. Chamava-se João porque se inspirou em João XXIII, o promotor do Concílio Vaticano II, il Papa buono (o "Papa Bom", dizia o povo, como se os outros tivessem sido outra coisa.). E estranho que se chamasse João, pois, como é sabido, João Paulo encarregou-se pessoalmente de atacar o espírito de Vaticano II. Chamava-se também Paulo, o nome do fundador da instituição "Igreja". Nome inspirado em Paulo VI, o Papa que explicitamente defendeu as vantagens do colonialismo e do capitalismo enquanto sistemas (na encíclica Populorum Progressio), condenando apenas as distorções desses sistemas. O Papa que também se manifestou pela penalização da contracepção, para já não dizer do aborto (encíclica Humanae Vitae). O Papa que também andou por Israel, por África e pela América Latina.
João Paulo II, como se vê, foi bem mais Paulo do que João. Paulo a mais e João a menos.
João Paulo II, quando ainda não o era, viveu na Polónia ocupada pelos nazis. Consta que o futuro João Paulo estava ciente da situação dos judeus no gueto de Cracóvia, mas como o gueto era guardado dia e noite, nada podia fazer para os ajudar. Virou-se então para a mística e procurou interiormente a sua vocação espiritual. Com o tempo, o futuro João Paulo tornou-se Bispo e Arcebispo. Os judeus dos guetos polacos tornaram-se  noutra coisa.
Saberia João Paulo então que um Papa Paulo tinha sido o fundador dum gueto para os judeus? Na própria Roma papal? Saberia ele que outros Papas, quatro séculos de Papas, não apenas preservaram esse gueto, mas também instituíram outros semelhantes em quase toda a Itália? Saberia ele que foi preciso esperar que toda a Europa acabasse com os seus guetos para finalmente acabar-se o de Roma? Saberia ele, portanto, que os nazis apenas ressuscitaram e desenvolveram para pior algo que fez parte da política oficial da Igreja entre 1555 (data de emissão da lei canónica sobre o gueto de Roma pelo Papa Pauto IV) e 1883 (ano de abolição do mesmo gueto)?
Não sabia o futuro Papa João Paulo II a História da sua Igreja? Não sabia ele que os judeus eram tidos pela Igreja como os assassinos de Jesus? Não sabia que Jesus era judeu, filho da judia através de quem Deus se fez encarnar?
O unanimismo em torno de João Paulo II a que, nos últimos dias, a televisão, a rádio e os jornais nos obrigam a assistir dá a entender que tudo isto foi ultrapassado. E, no entanto, olhe-se para as excomunhões e canonizações ditadas por João Paulo. Excomungou padres porque pregavam pelos pobres contra os poderosos nas Américas Central e do Sul, mas limitou-se a condenar verbalmente os padres (incluindo nove arcebispos e dois cardeais) da América do Norte comprovadamente culpados dos mais abomináveis crimes de pedofilia e exploração sexual. O bispo Oscar Romero, assassinado em plena Missa pelos sicários dos ricos, é considerado um santo pelo povo de El Salvador. Resultado: João Paulo baniu qualquer discussão acerca da sua possível beatificação por 50 anos. Mas canonizou (fez Santo) õ último Imperador Austro-Húngaro dos Habsburgos.
Sobre estas e tantas outras alianças de João Paulo II com os pobres e com a santidade nada estamos a saber através dos meios portugueses de comunicação social.
Mas agora que o Papa morreu e que tantos se apressam a ser os primeiros a chegar junto à sua urna, é preciso lembrar o que João Paulo II fez e não fez, quis e não quis, aceitou e não aceitou. E recordar que os homens bons raramente são beatificados, que os seres humanos não foram feitos para serem fechados em guetos, e que o Reino dos Céus de que falou Jesus na montanha não é uma propriedade dessa multinacional podre de rica chamada Vaticano.


  
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Hélio J. S. Alves

Hélio J. S. Alves

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