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A tradição oral africana como possibilidade de compreender a complexidade do cotidiano escolar

Iniciemos com um questionamento: se vivemos numa sociedade marcada, predominantemente, pela escrita, onde a oralidade se distancia dos fundamentos da tradição oral, sendo utilizada como elemento de comunicação, por que trazer a cosmovisão africana para compreender o cotidiano escolar?
Porque, além de acreditar que com a compreensão das raízes africanas e da tradição oral, podemos melhor compreender as próprias relações na sociedade brasileira, em que tais raízes nos constituem, mesmo que negadas ou subjugadas pela História Oficial pautada na racionalidade ocidental, considero que tal cosmovisão que não aceita o paradigma clássico, pautado no pensamento disjuntivo, venha ao encontro da opção ética, política e epistemológica que tenho feito a fim de compreender melhor as relações e interações no âmbito social, principalmente, no que se refere aos estudos com o cotidiano escolar afro-descendente, pois traz marcas que o singulariza.
Para H. Bâ, autor africano, ?a tradição oral é a grande escola da vida?, sendo, ao mesmo tempo: religião, arte, ciência história, divertimento, recreação, pois todo pormenor nos remonta à Unidade primordial. Ou seja, para compreender a realidade não há que se separar as partes, isolando as áreas do conhecimento, pois a compreensão de cada parte, mesmo resguardadas suas especificidades, remonta ao todo, sem hierarquizações de conhecimentos e saberes. Tendo por base a iniciação e a experiência, o homem que se forma na tradição oral é conduzido à sua totalidade.
H. Bâ questiona a primazia da escrita em relação à oralidade quando se trata da maior confiança nos testemunhos de fatos passados. Para ele, os testemunhos humanos valem o que vale o homem, nos instigando a rever pontos de vista, pois, segundo ele, a oralidade fez nascer a escrita e os primeiros arquivos ou bibliotecas, foram o cérebro humano; antes da escrita, os pensamentos a antecipam quando o escritor trava um diálogo consigo mesmo.
J. Vansina, outro autor africano, nos diz que ?a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade?, e as sociedades de tradição oral partem desse princípio, pois a fala não é mero elemento de comunicação cotidiana, mas um meio de perpetuar a história comum, um meio de preservar a sabedoria ancestral. A oralidade é potencializadora: ?a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas?.
Para a tradição africana, a fala é um dom de Deus, ela é divina no sentido descendente e sagrada, no sentido ascendente, expressando vibrações de forças, independente do modo de exteriorização que assuma. ?É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma?, nos diz H. Bâ.
E, se é força, é porque a fala cria uma ligação de vaivém, gerando movimento e ritmo, que é vida e ação. Assim, todos(as) nós fazemos parte deste processo de co-criação do qual a palavra é o elo.
Neste sentido, a tradição oral é geradora e formadora de um tipo particular de homem e de mulher, não se limitando à transmissão de narrativas ou de determinados conhecimentos. E assim percebo o trabalho com narrativas orais no cotidiano escolar ? potencialmente formador e transformador ? pois possibilita o diálogo, a reflexão, a construção de sujeitos mais atentos à palavra do outro, portanto, às diferenças, às singularidades de cada história, dando visibilidade a estas histórias, à cultura e à cosmovisão de matriz africana.
Este tem sido um desafio: buscar melhor compreender o compreender dos diferentes sujeitos presentes no cotidiano, pois, como nos ensina a sabedoria ancestral africana ?cada partido ou nação enxerga o meio-dia da porta de sua casa?.


  
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Regina de Jesus
Univ. Estadual do Rio de Janeiro, Brasil
Regina de Jesus
Univ. Estadual do Rio de Janeiro, Brasil

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