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Cidades educadoras e exercício da cidadania

?sendo a educação o veio e a expressão da cultura de uma sociedade, (?) é um logro dedicar-lhe espaços e tempos, por muito alargados que sejam, se isso significar a secundarização ou o abandono efectivo e simbólico de outros.

Há frequentemente uma tendência muito forte para se perspectivar a acção educativa das comunidades em função de estritos critérios formais, ainda que esbatidos em termos da sua identificação e referenciação. Buscam-se, antes de mais, nesse sentido, centros de ensino/aprendizagem complementares ou alternativos à escola, como o poderão ser as associações e organizações cívicas de índole cultural, recreativa, filantrópica ou humanitária, a par de se tentar captar para a causa da formação protagonistas da actividade económica, social e política.
É evidente que a implicação de todos estes núcleos é decisiva pela sua participação, com as mais-valias que lhes são próprias, num projecto colectivo que assim ganha em termos de multidimensionalidade, de recursos e de responsabilização colectiva. Acontece, porém, que a tendência persistirá para se continuarem a distinguir os espaços ? e os tempos - da educação, ainda que agora alargados e diversificados, daqueles que, à partida o não são. Prossegue-se, de alguma maneira, o esquema das sociedades urbanas modernas e contemporâneas que aqui retomaram o pressuposto dos limites entre o sagrado e o profano ou, se se quiser, um pouco na linha de Foucault, os limites entre o interior e o exterior que balizam os espaços da legitimação e da normalidade social?
Ora, na verdade, o exterior, sem prejuízo de poder e dever permanecer enquanto plataforma de autonomia e de informalidade, não terá, por isso, de ficar à margem da topografia das cidades educadoras. Referimo-nos aqui muito concretamente às ruas, às praças, aos jardins, em que o relaxamento da pressão educativa formal não pode acabar por redundar num puro e simples esquecimento dos objectivos e fundamentos axiológicos da identidade pessoal e da coesão colectiva. É que sendo a educação o veio e a expressão da cultura de uma sociedade, constituinte das suas representações e das suas rotinas, é um logro dedicar-lhe espaços e tempos, por muito alargados que sejam, se isso significar a secundarização ou o abandono efectivo e simbólico de outros.
E é na verdade nestes contextos em que, diminuída a pressão da intencionalidade educativa, se tendem a revelar e a sedimentar os comportamentos que definem e estruturam o corpo identitário de uma colectividade. Com uma força que, com certeza, rivaliza até com o poder dos meios de comunicação. Trata-se da força do exemplo, das vivências partilhadas, da normalidade do quotidiano.
Muitos exemplos (negativos) ? aparentemente comezinhos - podem ser trazidos a um tal propósito desde a estética das montras e placas dos estabelecimentos, à ocupação dos passeios com todo o tipo de expositores improvisados, passando pelos hábitos de cuspir e deitar papéis para o chão, pela agressividade posta na condução dos veículos, pela sujidade, pelo ruído designadamente das motorizadas, pela destruição de equipamentos, pela falta de delicadeza para com os outros quando se trata de abrir ou fechar a porta de uma loja ou de uma repartição, etc., etc. Tantas e tantas atitudes anti-sociais que, tornando-se banais, ganham precisamente desse modo uma força modeladora que tende a rivalizar e até a sobrepor-se a todo e qualquer esforço formativo em sentido contrário. Tanto mais, diga-se em abono da verdade, quando o tempo da sua vivência se espraia muitas vezes, através das condutas e da desatenção de alguns dos seus protagonistas, pelos próprios espaços identificados previamente como educativos. Isto sobretudo quando aqui a educação cívica é encarada como mais uma disciplina curricular onde, para além da afirmação de grandes e abstractos princípios, se esquece a força formadora do quotidiano?
As cidades educadoras podem jogar neste âmbito a sua força realmente inovadora ou tornarem-se apenas uma extensão das formalidades da educação com a agravante de não poderem sequer assegurar, pela sua própria natureza e dimensão, a educação formal para que, entretanto, a escola se encontra vocacionada e em que, apesar das suas contradições e insuficiências, tem um papel insubstituível.
Uma cidade educadora tem de partir de um princípio tão simples quanto difícil de se instituir mas que é o seu cerne, sob pena de cair na mais elementar demagogia: o princípio de que a educação deverá emergir de cada um de nós e de todos nós. Só que um princípio não é, por esse facto, uma realidade e é sempre mais fácil repetir o que está feito.
Uma cidade educadora, onde há necessariamente escolas, não é uma escola grande, com instituições, ruas, praças e jardins. Para que aquela exista, têm de existir, isso sim, instituições, ruas, praças e jardins onde vivam pessoas que educam porque são educadas! Eis o desafio maior que se coloca ao exercício da nossa cidadania: romper com a circularidade que ratifica a mediania, quiçá a mediocridade?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto

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