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?É preciso entender e respeitar a identidade do 1º ciclo?

DANIEL ESPAIN, PROFESSOR AO SERVIÇO DE UMA CAUSA

Terá entrado a escola primária num processo de perda de identidade? Qual é hoje o seu verdadeiro papel no contexto do ensino básico? Um mero meio de transição para o 2º e 3º ciclos? Ou será que o 1º ciclo tem ainda, de facto, uma palavra importante a dar? Daniel Espain, professor da Escola Básica de 1º ciclo da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, considera que sim e revela nesta ?conversa de café? os argumentos que o levam a responder afirmativamente.
Depois de 34 anos de serviço e de já ter ultrapassado a idade de aposentação, Espain continua, aos 55 anos, a dedicar-se ao ensino por considerar que "ainda vale a pena lutar para modificar o sistema". Nesse sentido, acredita que é necessário ?entender e respeitar a identidade" do 1º ciclo e apostar sobretudo nos meios materiais, porque os meios humanos, esses, são ?extraordinários?. 

Os discursos oficiais apontam habitualmente para a importância do fortalecimento do papel do 1º ciclo no contexto da escolaridade básica obrigatória, mas, na prática, ele não assume essa dimensão. Qual é hoje, afinal, o papel do 1º ciclo no quadro do sistema educativo português?

De facto, o 1º ciclo tem-se diluído no conjunto dos três ciclos do ensino básico e julgo que tem vindo a perder a sua identidade nesse processo. Isso é visível, nomeadamente, no contexto dos agrupamentos verticais, onde o 1º ciclo é, na prática, um ?corredor de passagem? para o 2º e 3º ciclos.
Mas é preciso afirmar que o 1º ciclo tem uma forma própria de estar e de intervir no seu meio e que, nesse sentido, é necessário assumir a sua identidade no espaço e no tempo em que actua.

O 1º ciclo está habitualmente associado à ideia de ?parente pobre? do sistema educativo. Concorda com essa imagem?

Não penso que o 1º ciclo se compadeça de um sentimento de auto-comiseração. Ele tem no seu seio profissionais extraordinários. O que falta é reconhecer a sua importância e dotá-lo dos meios materiais e financeiros adequados aos seus objectivos. A passagem das escolas do 1º ciclo para os agrupamentos verticais não representou um reforço de verbas, pelo que elas estão dependentes da boa vontade e da sensibilidade das autarquias para desenvolverem o seu projecto educativo.
Por outro lado, e tendo em conta a natureza estruturante deste nível de ensino, é indispensável garantir apoio financeiro aos alunos ? para que aqueles que já são discriminados pela sua origem social, não o sejam também no interior da escola ?, organizando o sistema de forma que a escola assegure, no mínimo, os materiais de trabalho necessários.

O que falta? Um projecto global e coerente desenhado a longo prazo?

Sobretudo, é preciso que tanto o ministério da educação como os próprios sindicatos de professores entendam e respeitem a identidade do 1º ciclo. É preciso perceber que este sector não tem a mesma lógica dos ciclos seguintes, seja pelo tipo de aprendizagens, seja pelo tipo de apoio que deve prestar aos alunos. É necessário respeitar a identidade de cada uma das escolas, procurando o que há de comum nelas, caminhando no sentido inverso da sua massificação.

Já referiu por mais de uma vez o papel do 1º ciclo no contexto dos agrupamentos verticais. Sente que o 1º ciclo está, de certa forma, subordinado ao 2º e 3º ciclos?

Julgo que no processo dos agrupamentos não houve a preocupação de encontrar nem a fundamentação nem as estratégias pedagógicas adequadas para que ele resultasse numa mais valia. No fundo, prevaleceu uma lógica economicista.
A estrutura administrativa existente no 2º e 3º ciclos, por exemplo, podia ter sido aproveitada para, sem aumento de custos e respeitando a especificidade do 1º ciclo, fazer-se uma gestão integrada. Em vez disso, houve um ?casamento de conveniência? que não resultou por ter sido imposto e confrontar lógicas de organização distintas.
Nesse sentido, foi muito grave que se tivesse extinguido órgãos importantes para o 1º ciclo, como o Conselho Escolar, onde se discutia e resolvia os problemas pedagógicos de cada escola, com certeza diferentes da situada na freguesia ao lado.
Isto porque, apesar de termos representantes nos vários órgãos do agrupamento, existem matérias que, pela sua especificidade, deveriam ser qualificadas pelos elementos que melhor as conhecem, já que, no contexto de uma realidade mais abrangente, essas matérias se diluem na opinião de uma maioria menos qualificada para se pronunciar sobre eles.
Sempre achei interessante a ideia da constituição de agrupamentos partindo de uma perspectiva de convergência pedagógica, não de desaparecimento das respectivas identidades.

Um novo modelo de formação para transformar as práticas

Que opinião tem acerca da actual formação inicial de professores?

Parece-me que as instituições de formação inicial desenvolvem um trabalho sério no sentido de munir os docentes com um conjunto sólido de perspectivas teóricas, mas são visíveis algumas falhas no trabalho prático.

Defende uma formação em exercício?

Sim, julgo que seria fundamental que a formação inicial fosse complementada com uma formação continuada - em exercício. Salvo raras excepções, o que se verificou ao longo dos últimos anos foi uma descontinuidade de formação, que não implica, na maioria das vezes, uma mudança de prática em contexto de sala de aula.
Esta formação contínua não resulta porque é puramente pontual e não está dotada de uma retaguarda que permita aos professores corrigir e melhorar determinados aspectos da aprendizagem. Na minha opinião, é preciso uma formação centrada na escola e no seu projecto educativo, que acompanhe o trabalho pedagógico do professor.
Nos anos oitenta ainda existiu uma estrutura de orientação pedagógica, de carácter experimental, que desenvolveu um processo de orientação pedagógica com grupos de professores, mas actualmente não vislumbro qualquer entidade orientada para esse tipo de tarefa. Na minha opinião, esse trabalho foi extremamente válido.

Mas foi interrompido?

Foi interrompido e nem sequer existe uma avaliação dos resultados. Esse é outro dos grandes problemas do sector educativo no nosso país: não haver acesso às avaliações realizadas sobre os trabalhos desenvolvidos e não se retirar mais valias a partir das suas experiências.

O modelo de professor generalista não deveria ser repensado?

Sim, defendo que deveria haver uma especialização dos professores do 1º ciclo por áreas de conhecimento. Na matemática, por exemplo? É impensável estruturar a aprendizagem de uma matéria como a matemática com um professor que não tenha uma formação especializada nessa área. Um professor primário já não é aquele que ensinar a ler, a escrever e a contar?
Na minha perspectiva, considero que se não actuarmos logo no 1º ciclo, a nível da matemática e da língua portuguesa, inculcando desde cedo uma metodologia científica aos alunos, não há ensino secundário que resista? Continua-se a fazer as reformas pelo secundário, quando elas deveriam ter como base o 1º ciclo.

Qual é a sua opinião acerca das provas aferidas?

As provas aferidas ainda são o menos, só espero é que não se lembrem de reeditar os exames porque esses não servem para aferir rigorosamente nada? Era melhor que esse dinheiro fosse empregue em dar apoio pedagógico às escolas, essa é que é a principal necessidade.

Como vê a introdução de uma língua estrangeira no 1º ciclo, tal como foi sugerido pelo novo governo socialista?

Não nego que a aprendizagem de uma língua estrangeira seja importante, mas preocupa-me sobretudo que não se invista numa aprendizagem mais aprofundada da língua portuguesa.

O desemprego que atinge a classe docente afecta particularmente o 1º ciclo?

Não tenho dados que me permitam responder a essa questão, mas existirão certamente muitos professores contratados neste nível que fazem falta no sistema. E fazem falta porque estão a suprir, de facto, as necessidades do sistema, leccionando duas e três turmas?
Além disso, a ideia peregrina de que uma escola com dez turmas pode funcionar com apenas dez professores não passa pela cabeça de ninguém. É, realmente, a pior forma de poupar. Cada escola deve dispor de um conjunto de professores que permita desenvolver um projecto educativo sólido, que, como se sabe, não passa só pelas actividades da sala de aula.

Como vê o processo de encerramento das escolas em meio rural?

Devo confessar que me sinto dividido relativamente a esta questão.
Se um grupo de 24 alunos por professor me parece excessivo ? já que as necessidades e as respostas devem ser encaradas a nível individual e não numa perspectiva colectiva ?, a existência de um grupo de dois, três ou quatro alunos por escola parece-me igualmente mau, já que dessa forma eles não vivem o processo de socialização indispensável naquelas idades.
Por outro lado, se a escola se assume, em muitos casos, como a última instituição que mantém viva a aldeia, talvez seja necessário encontrar outras estruturas e outras estratégias para que ela sobreviva com dignidade.
Acima de tudo, parece-me essencial é que, ao fechar uma escola, sejam criados centros que proporcionem às crianças que se deslocam para fora do seu contexto condições de excelência a nível de alimentação, de transportes e de ocupação de tempos livres.

Gostaria de passar alguma mensagem em particular aos colegas que ingressam agora na profissão?

Não posso deixar de fazer referência a um conjunto de colegas contratados com quem tenho o privilégio de trabalhar na minha escola, que demonstram uma enorme vontade de trabalhar e de se desenvolverem enquanto profissionais.
Julgo que quando estes novos professores chegam a uma escola onde são ouvidos, onde as suas perspectivas de trabalho são acolhidas, em que sentem que têm vez e voz, podem desenvolver um trabalho belíssimo. Faço assim um apelo aos novos professores no sentido de manterem esta perseverança ? e aos mais velhos no sentido de os apoiarem ?, porque são eles os únicos que ainda podem mudar o actual sistema.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Daniel Espain
Professor
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Daniel Espain
Professor
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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