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A flexibilidade curricular e as escolas de condução

Talvez nenhum outro factor revele melhor os valores da escola do que a forma como é encarado o currículo.  Tradicionalmente o currículo é concebido como exterior ao aluno, sendo-lhe transmitido de forma a criar homogeneidade, isto é, no final de um determinado ciclo de actividades escolares quem foi aprovado oferece a garantia de ter cursado (percorrido) um caminho curricular igual aos alunos que exibem um grau académico igual. Era esta a forma como se entendia que se outorgava a ?igualdade de oportunidades? dando a todos (pelo menos em teoria) o mesmo. Vamos comentar estas características digamos ?comuns? do currículo à luz da criação, desenvolvimento e sustentação de uma escola que não exclua nenhum aluno, o que se vulgarmente se chama uma escola inclusiva.
Antes de mais a característica ?externa? do currículo.  A escola pública foi criada para concretizar a quimera da ?igualdade de oportunidades?.  Dando a todos os alunos o mesmo currículo, ter-se-ia a garantia que eles tinham uma base comum de partida, partiriam em circunstâncias iguais para travarem a batalha da selecção dos melhores.  Sabemos que esta hipótese mais ou menos benévola, acabou por fracassar dado que se constatou que sendo os capitais culturais e as culturas muito diferentes à entrada, a escola mostrou-se incapaz por si só de proporcionar esta igualdade de oportunidades.  A escola tornou-se mesmo num factor de agravamento de desigualdade ao sancionar esta desigualdade com critérios de ?inteligência?, ?maturidade?, ?, etc. O currículo ?exterior? à escola, isto é, aquele que se baseia predominantemente nas metas, conteúdos e processos de avaliação oriundos das estruturas coordenadoras do sistema educativo, é assim, um factor de desigualdade e criador de exclusão.  Para combater esta exclusão, precisamos de incentivar mais e mais o desenvolvimento curricular encarnado na escola, nos seus percursos, alunos, professores e realidades socioculturais.  Isto não significa necessariamente que o currículo se torne tão específico que não seja possível compará-lo com outro.  Significa que o desenvolvimento de currículos mais ?construídos? e ?internos? à escola permitirão uma melhor calibração dos conteúdos, das estratégias e da avaliação aos alunos concretos de modo a lhes permitir chegar o mais longe que possam e desta forma então estarem mais próximos da ?igualdade de oportunidades?.  O termo igualdade aqui é falacioso porque a igualdade é ?de oportunidades? e não ?de currículo?, um currículo que sendo construído na escola é construído com e para os alunos.
O facto dos alunos de uma classe serem uma população heterogénea não implica que necessariamente tenham de ser sempre ensinados de uma forma diferente: apesar de todos sermos diferentes uns dos outros podemos em muitas situações aprender com outras pessoas às quais nos ligam interesses de aprendizagem, ou nível de conhecimentos.  Não têm de ser sempre mas deve-lhes ser dada, muitas vezes, a oportunidade de aprender de forma individualizada.  O ensino em grupos heterogéneos implica que para aprenderem eficazmente,  deverão ter acesso a um currículo que não seja como aqueles bonés de tamanho único (?one size fits it all?) isto é, um currículo uniforme mas sim a um currículo flexível.
Felizmente alguma coisa se tem feito e publicado sobre a teoria e a prática dos currículos flexíveis.  Currículos flexíveis que para não defraudar os alunos têm que ter também uma flexibilidade que se estende até à avaliação.  Nas eleições legislativas do passado mês de Fevereiro, entre o paupérrimo debate que a educação suscitou surgiu rápida e  inconsequentemente (como o braço de um naufrago por entre as alterosas ondas) o tema da avaliação.  Vimos então que existem posições diferentes sobre quando a avaliação deve estar presente no sistemas de ensino.  Era bom que se tivesse discutido também o ?como é? que deve estar presente.  Se continuamos a ter da avaliação a representação medonha dos exames ?do antigamente? avaliação em que a sorte e a circunstância podiam distorcer gravemente (e de forma excludente) os alunos que a sofriam.  Pensar em flexibilidade do currículo sem uma reflexão sobre o tipo de avaliação que este currículo vai ter, pode constituir uma brincadeira de mau gosto para os alunos.
Para alguns professores, e muitos não professores, o mal da escola actual é exactamente ser demasiado flexível.  A escola ?de há 30 anos atrás? é louvada pelo seu rigor, exigência e constância quando cotejada com a escola actual representada como pouco rigorosa, ?facilitista? e demasiado flexível.  Será assim?  A nossa escola actual é assim tão flexível no seu currículo?  Vamos comparar a escola pública actual em termos de flexibilidade com outra escola? por exemplo com uma escola de condução automóvel.  Como se sabe, as escolas de condução automóvel nem são usualmente consideradas como modelos de didáctica ou de pedagogia.  Mas será que estas são mais flexíveis que as escolas públicas? Senão vejamos: na escola de condução, o aluno pode escolher quantas lições quer ter e quando, é ele que se propõe a exame e escolhe quando, se reprovar numa parte do exame é-lhe considerada a outra parte em que foi aprovado, pode propor-se a exame de novo quando se sentir preparado. Comparada com esta flexibilidade a escola pública surge como muito rígida e uniforme. E sem dúvida que as escolas de condução têm um índice de abandono escolar muito interior e o seu sucesso educativo é muito superior.
Mas então se a nossa escola pública é menos flexível que uma escola de condução automóvel, para que servem os discursos ?politicamente correctos? sobre a imprescindibilidade da flexibilização?  Afinal flexibiliza-se o quê ? Os conteúdos, os objectivos, as estratégias, a avaliação?
Ora cá está talvez um domínio em que as escolas e os professores podiam fazer um esforço para, pelo menos, darem aos seus alunos um currículo que pudesse crescer ao seu ritmo e fosse um companheiro (exigente, é claro?) no seu processo de aprendizagem e desenvolvimento. É só seguir o exemplo das escolas de condução?


  
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva
David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador do Fórum de Estudos de Educação Inclusiva

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