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Como se formou e se formam visões hegemônicas sobre a ?análise? da sociedade?

Mais terra à terra, gostaria de saber por que, se até às abelhas é reconhecida a capacidade de comunicar para instruir e informar, alguns ? em especial as chamadas autoridades educacionais ? se sentem no direito de dizer que as professoras e os professores não fazem isto? Por outro lado, se os cientistas reconhecem que aos seres humanos é possível refletir e elaborar idéias, por que é negada [às professoras e professores] esta condição?

Toda a vez que leio em jornal, ouço/vejo na televisão ou escuto em reuniões uma referência desairosa a professores fico muito aborrecida. E já há algum tempo fico relacionando algumas observações, de fora da escola, para responder ao que é dito. Trago dois textos de dois grandes pesquisadores para discutir essa questão. O primeiro é Bronowski(1), matemático muito interessado na história das ciências, nascido na Polônia, mudando com a família para a Inglaterra, durante a Primeira Guerra Mundial e transferido para os Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. O segundo é Robert Darnton(2), historiador americano preocupado com a história da França e com os fatos de seu cotidiano.
Em um de seus livros nos conta Bronowski:
Há duzentos anos sabe-se que, ao regressar (...) à colméia, depois de descobrir uma fonte de mel, a abelha tem movimentos agitados, que aos poucos são repetidos por toda a colônia. Os apicultores que fizeram essa observação pela primeira vez, no século XVII, admitiam que tais movimentos exprimiam uma emoção primitiva. Acreditavam que a abelha se encontrava em um estado de excitação, que comunicava simplesmente às suas companheiras. Engano: na verdade, a comunicação entre as abelhas é mais precisa, e mais notável, que uma simples excitação.
Os estudos detidos de Karl von Frisch e de outros já demonstraram que a abelha que  descobriu  uma  fonte [ para produzir ] mel  fala às  demais  abelhas  com símbolos bastante específicos. Ela dança, seguindo a forma de um 8, enquanto as outras a seguem, repetindo a mesma forma, que contém duas mensagens exatas: a direção apontada pelo 8 indica qual o sentido a percorrer  para chegar à fonte descoberta; a velocidade com que a abelha dança o 8 indica a distância a que se encontra essa fonte. (p.22)
O exemplo é trazido pelo autor para mostrar que todos os animais se comunicam, usando uma linguagem. No entanto, também nota que são dois os ?modos? da linguagem: um é o que permite a «instrução» e a «informação», enquanto o outro é o que serve à «reflexão pessoal »e à «elaboração de idéias». A abelha, na história contada, está usando o primeiro modo. Já o último é exclusivo do ser humano. Isto leva Bronowski a concluir que o que o faz ser humano é «o uso de palavras ou símbolos, não apenas para se comunicar com os outros, mas para manipular suas próprias idéias (...) [Ou seja], podemos refletir sobre tais idéias, modificá-las e ampliá-las, e para nós elas adquirem associações pessoais. É neste sentido que as palavras passam a ser veículos da nossa imaginação» (p.23).
É a partir destas reflexões que Bronowski faz um trabalho de comparação entre a arte, especialmente a poesia, e a ciência, no que se refere à imaginação. A unir estas duas maneiras de expressão humana está o fato de que só existem porque os seres humanos têm a capacidade de conceber coisas que não estão presentes em sua presença, ou seja, que podem ser recriados pela imaginação. Nisso está a importância do símbolo para representar o que está ausente. O que considero importante discutir com Bronowski, cujos trabalhos há muitos anos vêm «marcando» os meus, é que ele escolhe, para trabalhar a imaginação humana, duas atividades que, no mundo moderno, são chamadas ?nobres?, com direito, portanto, a serem aceitas como ?imaginativas?: a ciência e a poesia. Nobres, tanto no sentido de atividades que não podem ser exercidas por qualquer um, pois exigem preparo ou inspiração muito especial, como porque, em princípio, entende-se que são exercidas por pessoas abnegadas, distraídas, ?fora do mundo? dos seres humanos comuns e que ligam pouco para o dinheiro ou para os bens materiais. 
No entanto, o poeta, tanto quanto o cientista, ao levantar pela manhã ? mesmo que seja ao meio-dia, pois tanto aos poetas como aos cientistas é permitido acordar a esta hora, se a ?inspiração bateu? de madrugada ? vai ao banheiro, toma café ou outro líquido, arruma os papéis trabalhados à noite ou que vão ser necessários durante o dia de trabalho, decide o que a família ou ele/ela próprio vai comer durante o dia ou à noite ?voltando do trabalho?, em especial se for mulher. Tudo isto feito, às vezes, com muita ordem, outras vezes no meio de alguma confusão, se a família é formada também por crianças que têm seus ?problemas? e ritmos próprios. Esta questão, ao começar a preocupar os cientistas, fez com que Bachelard(3), para explicar a persistência das idéias do «senso comum» no pensamento dos próprios cientistas, recorresse à idéia de que há uma «filosofia diurna», aquela que faz o cientista manter uma relação realista com sua prática científica, e a «filosofia noturna», quando cede ao conforto das idéias vulgares. Mas, o que ando buscando saber, há muito tempo, é como essas atividades influem e ?marcam? nossos fazeres, em nossos tantos contextos cotidianos. Como essas atividades que não são ?nobres?, mas são as que executamos todos os dias, puderam, durante séculos, ser ignoradas e não precisaram ser estudadas seriamente? Porque, hoje, temos necessidade de estudá-las para compreender o mundo em que vivemos?
Confesso, também, que, mais terra à terra, gostaria de saber por que, se até às abelhas é reconhecida a capacidade de comunicar para instruir e informar, alguns, em especial as chamadas autoridades educacionais, se sentem no direito de dizer que as professoras e os professores não fazem isto? Por outro lado, se cientistas reconhecem que aos seres humanos é possível refletir e elaborar idéias, por que é negada  a eles e elas esta condição?
Mas há ainda, um outro e relevante ponto que precisa ser tratado. No seu trabalho sobre as ?árvores do conhecimento?, ou melhor dizendo, sobre as classificações dos conhecimentos que os cientistas modernos tiveram que organizar para fazer a própria ciência, Darnton  vai trazer um exemplo que leva em conta uma outra história de animais, aquela em que Jorge Luis Borges ?descreve? em sua enciclopédia chinesa e que foi discutida por Foucault no seu livro ?As palavras e as coisas?. Assim, escreve Darnton:
«[No seu livro, Borges] dividia os animais em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães vadios; h) incluídos na presente classificação; i) enfurecidos; j) inumeráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo; l) et coetera; m) os que acabaram de quebrar o vaso de água; n) os que, de uma grande distância, parecem moscas. Este sistema de classificação é significativo, argumenta Foucault, por causa da simples impossibilidade de cogitá-lo. Confrontando-nos, bruscamente, com uma série inconcebível de categorias, expõe a arbitrariedade da maneira como classificamos as coisas. Ordenamos o mundo de acordo com categorias que consideramos evidentes simplesmente porque estão estabelecidas. Ocupam um espaço epistemológico anterior ao pensamento e, assim, têm um extraordinário poder de resistência. Postos diante de uma maneira estranha de organizar a experiência, no entanto, sentimos a fragilidade de nossas próprias categorias e tudo ameaça desfazer-se. As coisas se mantêm organizadas apenas porque podem ser encaixadas num esquema classificatório que permanece inconteste.(...) A classificação é, portanto, um exercício de poder. [Assim,] um assunto relegado (...) para as ciências ?leves?, em vez das ?pesadas?, pode murchar antes mesmo de florecer. Um livro colocado no lugar errado da prateleira pode desaparecer para sempre. Um inimigo definido como menos do que humano pode ser aniquilado. Toda a ação social flui através de fronteiras determinadas por esquemas de classificação, tenham ou não uma elaboração tão explícita quanto a de catálogos de bibliotecas, organogramas e departamentos universitários. (...) Insultamos alguém chamando-o de rato, em vez de esquilo. ?Esquilo? pode ser uma expressão carinhosa (...). Mas os esquilos são roedores tão perigosos e portadores de doenças como os ratos. Parecem menos ameaçadores porque são, inequivocamente, do ar livre.(...) [Em síntese,] todas as fronteiras são perigosas. Se deixadas sem proteção, podem romper-se ? nossas categorias cairão e nosso mundo se dissolverá no caos. Estabelecer categorias e policiá-las é, portanto, assunto sério. Um filósofo que tentasse remarcar as fronteiras do mundo do conhecimento mexeria com o tabu. Mesmo se mantivesse distância dos assuntos sagrados, não poderia evitar o perigo; o conhecimento é, por sua natureza, ambíguo. Como os répteis e os ratos, pode escorregar de uma categoria para outra. É mordente.»  ( p. 247-250)
Esse alerta que Darnton faz, buscando apoio em Borges e Foucault, me permite levantar algumas questões: Como se formou e se formam visões hegemônicas sobre a ?análise? da sociedade? Como se faz a crítica a essas posições? Em que situação nos encontramos, hoje, no que se refere às questões epistemológicas? Também, aqui, interessa-me particularmente compreender que problemas as respostas encontradas para essas questões podem trazer às situações enfrentadas e às alternativas encontradas pelas professoras e professores em sua prática, no processo ensino-aprendizagem. Por que alguns podem dizer que o que eles e elas fazem não é aceitável quando ?não conhecem da missa a metade??
É nesses diálogos que vou tentando entender o que se dá na escola, a partir da idéia que fora da escola também se aprende, nas tantas redes cotidianas de nosso viver.

Notas:
(1) BRONOWISKI, Jacob. Los orígenes del conocimiento y la imaginación. Barcelona: GEDISA, 1981.
____________. O olho visionário ? ensaios sobre arte, literatura e ciência. Brasília: Editora UnB, 1998.
(2) DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da ?Encyclopédie?. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
(3)BACHELARD, Gaston. La formation de l?esprit scientifique. Paris: J. Vrin, 1972.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Nilda Guimarães Alves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Nilda Guimarães Alves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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