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A propósito da entrevista de José Gil

Em jeito de carta aberta ao «PÚBLICO». A propósito da entrevista de José Gil ao mesmo diário em 16 de Janeiro, subordinada ao título: « Em Portugal a Inveja não é um Sentimento, é um Sistema»

1. Somos um país desviado da sua rota humanizada/humanizante, desde há cinco séculos, desde os inícios do reinado de D. Manuel I: um país estigmatizado desde então, em termos psico-sócio-antropológicos, por esquizofrenias, paranóias, autismos e «transferências psicóticas» de toda a sorte, que são oriundos, substancialmente, de todo um modo de estar e ser produzido por uma Relação patológica entre senhores e súbditos, baloiçando entre o despotismo e a submissão. «Se tu soubesses o que custa mandar, preferias obedecer toda a vida»!... Reza o adágio tradicional. O que vigora, desde há meio milénio em Portugal, é o que eu chamo «o Poder seco», i.e., o Poder divorciado do Saber!

2. Estamos seguramente a dois terços de acordo com o ideário e o diagnóstico crítico-realista, desapiedado e objectivo, como cumpre, de José Gil, expresso no seu livro «Portugal, Hoje ? O Medo de Existir»(1). Mas receamos, seriamente, que o seu trabalho crítico redunde em mais um diagnóstico castrado, um «acto falhado»!... Acontecimento/Inscrição sem consequências... E será seguramente mais um «acto falhado», se não for historicamente identificada a origem etiológica das psico-sócio-patologias nacionais de carácter estrutural/estruturante.
Procedemos, inclusive, a uma recensão crítica (10 páginas) do livro de José Gil, que integrámos no nosso Estudo de mais de 100 pp. subordinado ao título: «Refaçam a História de Portugal», o qual será integrado numa antologia de textos com o titulo Mito-História & Épica, a ser proximamente editada em São Paulo, Brasil, pela Edicon.

3. Muito sintomatologicamente, esta obra, que vai ser editada em São Paulo, é urdida e arquitectada em torno da obra do historiador Alfredo Pinheiro Marques ? com mais de 100 títulos publicados, entre livros, opúsculos, artigos e conferências ?  uma obra verdadeiramente revolucionária no que tange o processo histórico dos Descobrimentos Marítimos Portugueses. Ora, precisamente por causa das suas descobertas historiográficas, aliás devidamente fundamentadas, este historiador fez a sua experiência amarga de «persona non grata» do «Establishment», e depois de 22 anos ao serviço no Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, viu-se despedido dessa Faculdade em Outubro passado, por «razões administrativas»... por «inexistência de serviço a distribuir-lhe»; entenda-se: por ele não poder concordar com as mentiras historiográficas e as ficções canónicas oficiais, que têm sido propaladas e matraqueadas ao longo da história nacional, tanto durante as monarquias como durante os regimes republicanos. As Invejas (e os correspondentes corporativismos...) e o «Poder seco» comandam tudo na Máquina Societária lusa!...

4. Numa perspectiva culturalista mais larga e omni-abrangente, convém verificar-mos que, em Portugal, as ideologias oficiais e oficiosas de índole imperial(ista) (portanto, não democrática) continuam hodiernamente a fazer farinha em abundância. Quem se lembrou ? para além do Professor Hélio J.S. Alves, do C.E.H.C. e do Grupo Granja no Brasil ? de começar a operar a Desconstrução (derridaísta) na ideologia imperial, patente e latente nesse tradicional emblema/símbolo da Nação lusa, que é o poema épico de Camões?
Os nossos vizinhos espanhóis (mesmo depois de 1898), nunca fizeram de «O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha», de Cervantes, (a sua obra literária nacional mais emblemática), o elixir das auras de glória e de império, em suma, nunca caíram nos vícios do aproveitamento laboratorial étnico-nacional(ista), que nós temos feito com «Os Lusíadas», durante a Monarquia e mesmo depois, nos regimes republicanos, sem esquecer o Consulado salazarista. Mesmo nos tempos de Unamuno e da «guerra civil», os espanhóis não chegaram  a fazer um entendimento que se possa chamar patrioticamente «doentio» do seu D. Quixote, ao passo que, entre nós, o entendimento e a encorporação de Os Lusíadas têm sido tradicionalmente e continuam ainda hoje, manifestamente ingénuos e patológicos!?

5. Será mais um «acto falhado» a iniciativa iconoclasta de José Gil?!...
Nós quiséramos bem que não. Mas tememos seriamente que o seja. Com efeito (já no livro, já na entrevista agora em questão) a metodologia epistemológica, implícita e latente, de J.G. padece, a nosso ver, de um vício fundamental e prenhe de consequências: o seu pensamento e discurso mostram-se, ainda, «metafísicos» (no sentido pejorativo do termo, a saber: são mágico-demiúrgicos). Pela nossa parte, gostaríamos que o Autor procedesse segundo a gramática do pensamento dialéctico-dialógico e  genético-genealógico.
Exemplos paradigmáticos do pensamento genético-genealógico (que aprendeu a configurar-se a partir da Biogénese), podemos encontrá-los em duas tópicas cheias de interesse e sabedoria: Michel Foucault, na sua obra «Les Mots et Les Choses» (Gallimard, 1966), (As Palavras e as Coisas, Portugália, 1968), onde o objectivo do autor é proceder à elaboração da arqueologia genealógica das ciências humanas, muito embora esse projecto seja erguido (erradamente...), no que nós chamamos o horizonte do monismo epistémico.
A segunda tópica é constituída pela conhecida Revista portuguesa (dos passados anos 70-80), «Raiz & Utopia», muito especialmente depois que ela foi assumidamente orientada por Helena Vaz da Silva e António José Saraiva. Quanto e aprendeu, nesta forja psico-sócio-cultural, no concernente à necessária e indispensável articulação das raízes e das utopias válidas, no atinente a esse filão do pensamento/discurso «glocal» (fusão de global e local), que o emergente «processus» de globalização (tecnológica e comercial) começou  a evidenciar e a desafiar, na década passada de 90!...

6. Ora José Gil, nesta sua entrevista, pareceu-nos incorrer, comprovadamente, nos vícios do pensamento/discurso «metafísico», em três passos mais significativos, que passamos a arrolar.
A) Na titulação da Entrevista (ibi, p.5), pode ler-se: « Em Portugal a inveja não é um sentimento, é um sistema»/José Gil. Cumpre-nos, todavia, fazer aqui um desconto: tal enunciado é mais do jornalista/entrevistador, Paulo Moura, do que propriamente do Autor, José Gil. Este paga logo, aqui, (curiosamente...), a sua corveia aos «media». Na verdade, o Autor matizou a sua afirmação numa tonalidade diferente: «A inveja é mais do que um sentimento. E um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja» (ibi, pp.8-9). É óbvio que se a Inveja, generalizada e estrutural, se tornou um vero e próprio Sistema, entre os portugueses adultos mas infantilizados, é precisamente porque ela é originariamente um Sentimento, e os portugueses são, em geral, reconhecidamente muito sensíveis.
Já consideramos que o entrevistador não atraiçoou o entrevistado, quando comentou a «terrível clarividência de José Gil», nestes termos: «Em Portugal nada acontece. Vivemos paralisados pelo medo da energia dos outros, pelo medo de não ter uma "boa imagem", pelo medo de "não estar à altura" (ibi, p5).

A propósito da entrevista de José Gil

B) O jornalista começou o seu questionário com o rio dos queixumes (os hebreus diriam: «o muro das lamentações»):  "Depois da leitura do seu livro, «Portugal, Hoje ? O Medo de Existir», é impossível não se ficar deprimido" (ibidem). Uma afirmação/provocação, afinal, que é ditada pelas ideologias implícitas do Establishment. Seria de esperar que o Autor rechaçasse, desde logo, a psicanalítica canga ideológica, que lhe pretendiam impor. Mas não. J.G. respondeu à falsa pergunta com desculpas e justificações plausíveis, pautadas ? dir-se-ia ? por um pensamento de recorte «puramente estratégico». A palavra ao Entrevistado: "Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá unidade a tudo o .que afirmo" (ibidem).
Essa ideia-facto (o tal fio condutor) é ? como o Autor esclarece logo a seguir ? a «não inscrição». A nossa grande pena é que José Gil (nem no livro, nem na entrevista) nos tenha elucidado sobre o manifesto lugar de origem, na História portuguesa, desse fenómeno estrutural/estruturante da Não-Inscrição. É fundamentalmente por esta razão que eu temo que o seu labor crítico resulte política e historicamente castrado!... Quanto à sua hesitação antes de publicar o livro, não podemos aplaudi-lo. Seria trair-se «in actu exercito», e desvalorizar a crítica estabelecida «in actu signato». É claro que manter «estas coisas em circuitos fechados», em ambientes secretos, significa precisamente continuar a filtrar e a deixar filtrar a vida nacional, segundo os padrões/patrões dos tradicionais «confessionários auriculares», e não segundo a gramática cristã da Exomologese pública, que, no Ocidente, esteve em vigor até ao séc. V da era cristã.
C) Mas há um terceiro passo da entrevista, onde o filósofo deixa assomar claramente um «discurso metafísico», no sentido pejorativo do termo. Quando aborda o medo durante o salazarismo. Diz o jornalista: "Mas era um medo hierárquico, de cima para baixo [Paulo Moura, quereria dizer aqui: de baixo para cima!... ? «Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão»!... Diz o anexim luso. Como todos são súbditos, é muito difícil encontrar alguns que não sejam vilões! ]. Como se transformou num medo do nosso semelhante?" (Ibi, p.6). Resposta do Autor: "Acho que no salazarismo, já havia um medo do semelhante, além do hierárquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdámos o medo, que se transformou. Acho que a principal razão foi porque não criámos suficientes instrumentos de expressão" (ibidem).
Quanta candura, ingenuidade e simplismo!... É claro que no salazarismo, já havia medo do semelhante, medo dos «bufos» (ou daqueles que, porventura não o sendo, deles se desconfiava...); e havia medo dos semelhantes, precisamente por causa da estrutura hierárquica da Sociedade, na mesma medida, portanto, em que havia medos hierárquicos. Mais: os medos hierárquicos não desapareceram (muito longe disso...) no nosso regime democrático pós-25 de Abril de 74. O suposto «medo transformado», que nós herdámos, após essa data, não se deve apenas, como pretende J.G., aos «insuficientes instrumentos de expressão»...
A grande verdade psico-sócio-histórica (nacional) é que nós não temos, ainda hoje, uma vera e autêntica Sociedade civil; e deixámos de a ter, enquanto Colectividade nacional (homogeneizada), desde o início do séc. XVI. A partir daí estivemos submetidos, societariamente, à lei de ferro, estrutural/estruturante, dos senhores e dos súbditos. A nossa cartilha de funcionamento societário nunca foi outra (até hoje!...) senão a da «Cultura do Poder-Dominação d'abord». O filósofo Agostinho da Silva (que não se deixava enredar em ingenuidades simplórias nem em novidades alvissareiras...) costumava, a propósito, brandir o refrão, cheio de sabedoria: «É a obediência dos súbditos que alimenta o despotismo dos tiranos!». Ora isto é verdade, tanto nas monarquias (absolutistas ou constitucionais) como nos regimes ditos republicanos.

7. Sobre as origens específicas dos «nossos medos nacionais». «E de onde vem o medo?» ? Perguntou o jornalista (p.6). O Autor respondeu como segue (ibidem): "Uma vez fiz essa pergunta a José Mattoso. Perguntei-lhe se vinha do salazarismo. Ele respondeu: «Muito antes disso». Mas não precisou de onde. Acho que ninguém sabe. Claro que no chamado «antigo regime», ou no feudalismo, imperava um medo real, físico". Ora, no regime do senhorialismo feudal/feudalizante, re-instaurado no reinado de D. Manuel I (1496-1529), com algumas modificações acidentais de percurso, têm vivido, afinal, os portugueses, desde então até ao presente. E não se deve pensar que estamos a metaforizar... Os que acharem que sim, são cegos e guias de cegos! ...

8. Sobre a malfadada e obsessiva auto-estima (que o Presidente Sampaio tem encarecido tanto, durante o seu segundo mandato), o entrevistador perguntou: «O que há de errado com a auto-estima?» (ibidem). Gostámos quase totalmente da resposta do Autor, que disse (ibidem): "Essa ideia reflexiva, de nos amarmos a nós próprios... Em vez de estarmos virados para fora, para os outros, para o mundo. Só nos podemos afirmar agindo, exprimindo-nos, ? não voltando-nos para a autocomplacência. Tudo o que é válido vem «de fora». Nós ainda temos essa ideia de que é preciso começar por uma transformação interior... Mas, em Portugal, não existe um «fora»". (o itálico é meu).
Concordamos com todo este parágrafo, à excepção da penúltima frase, em itálico, que até resulta contraditória no texto... Aliás, dir-se-ia que o próprio Autor resolve esta contradição num parágrafo anterior, onde ele havia declarado: "A expressão abre para o fundo, não apenas para fora. Mas nós estamos agarrados a um texto e não temos forças para sair dele" (ibidem). De facto, do que se trata mesmo é de reencontrar (dialéctica! /dialogicamente) a Identidade individual-pessoal/cidadã, perdida desde o reinado do Rei Venturoso (para ele e seus apaniguados, não para o Povo, e muito menos para o povão...). Entretanto, não se pode esquecer uma elementar verdade insofismável: As interioristas «masturbações ideológicas» não levam a sítio nenhum. E é, ao mesmo tempo, inegável que os portugueses carecem, estruturalmente, de uma barrela psicanalítica nos dois planos: individual e colectivo!...

9. Não somos uma Sociedade construída e arquitectada na base de Inter-Relações dialéctico-dialógicas, edificadas nos dois patamares essenciais: no das Instituições societárias e no dos Indivíduos-Pessoas/Cidadãos. Somos, antes, uma Massa amorfa amalgamada de elementos atomizados!... J.G. fala a verdade, a propósito das «transferências psicóticas», nomeadamente, respeito daqueles «elogios» típicos entre nós, que, em vez de louvarem, corroem, averrinam e apoucam (cf. ibi, p.8). Está, por conseguinte, cheio de razão o Autor, ao explicitar essas situações nestes dois nacos de texto: "Você sufoca-me com a sua energia. Terrível isto. Uma pessoa sufoca a outra com a sua energia. E o resultado é que estamos todos sem energia" (ibi, p.9). "Recusamos o conflito a céu aberto, mas temos uma violência incrível na nossa sociedade. Violência doméstica em relação às crianças [e nas relações entre cônjuges?! ...]. Os brandos costumes escondem uma violência subterrânea enorme" (ibidem).

A propósito da entrevista de José Gil

10. O Sistema da Inveja constitui, de facto, toda uma Sistemática psico-social, generalizada e estrutural na Sociedade portuguesa. E, na verdade, temos de convir que ele vem de longe, na História nacional; pode ser, entretanto, perfeitamente identificado e caracterizado nas suas origens; até se pode explicar perfeitamente, em termos psico-sócio-antropológicos.
O que não está certo, é que, no diagnóstico (em função de uma terapêutica eficaz!), nos quedemos pelas averiguações fáceis e estereotipadas, que prosseguem levando a água ao moinho do «Encoberto», dos messianismos sebastianistas e mistagogias deste jaez.
Eis por que não podemos concordar com conclusões do tipo: O Sistema da Inveja é antigo; mas não se conhece a sua procedência!... Se o nosso Desejo é promover uma Terapêutica, o Discurso tem de ser outro: Por que não se tem a coragem intelectual e cívica de identificar/localizar na sua origem, em termos de historiografia e História nacionais críticas e adultas, esse tal Sistema da Inveja, essa não-inscrição, esse medo de existir, esse esvaziamento ou anulação da identidade pessoal, essa colectiva condição de «inferiores» que se sentem cúmplices (e culpados...), na sua igualdade enquanto inferiores, diante dos chefes/senhores?!...
Precisamente porque se tem medo, os Indivíduos-Pessoas não se inscrevem, em Portugal; e nos portugueses, não se inscreve nem o passado nem o futuro. Dir-se-ia que as causalidades correntes (e, desde logo, as aristotélicas) deixaram de actuar?
O medo de existir, a impotência para produzir acontecimentos dignos do nome (postos os media de parte, para o efeito...) vêm de muito antes do salazarismo, do «antigo regime»!... Mas de onde, concretamente?... Enquanto não encontrarmos a Resposta histórica/historiográfica certa, para esta pergunta, todo esse nosso Discurso tem o ar de farsesco, o sabor amargo da alienação, da mistagogia e da impostura. Faz o jogo, afinal, da Cultura sempiterna do Poder-Dominação d'abord. Enquanto não se achar aquela Resposta, de nada valerá salientar, afincadamente, as dificuldades e a pobreza de Expressão, no atinente ao que se passa na nossa existência (pura sobrevivência...), individual e colectiva. O que, efectivamente, ressumbra neste discurso é uma pura e simples contradictio in terminis, porquanto o que a própria terapêutica postula é o aumento, e não a redução, da Expressão e da Investigação.

11. Herdámos, do Passado, esse medo de existir: tanto em relação ao Poder estabelecido, como em confronto com os nossos semelhantes (concidadãos...). É, de facto, muito pouco e frustrante afirmar que somos uma Sociedade suavemente paranóica!... Dado que ainda não dispomos de uma vera e própria Sociedade civil, pela mesma razão também ainda não fomos capazes, até ao presente, de domesticar os Poderes estabelecidos. Em Portugal, a Potestas societária continua a funcionar em «estado selvagem»!... O que aí está, diante de nós, na maior parte das situações, é o que eu chamo o «Poder seco» (Poder divorciado do Saber!...). Mesmo em democracia, claro. Não é, de resto, em regime democrático, que nos é dado, generalizadamente, tomar consciência desse Facto e poder exprimi-lo?!

12. A Cultura ? toda a gente o sabe... ? é transmitida psico-sócio-historicamente. Por isso, a Tradição e as tradições ainda têm valor e, depois de recebidas e filtradas criticamente, elas precisam de ser acarinhadas e promovidas no processus de transmissão às gerações vindouras.
A herança cultural e a biologia/genética constituem-se como dois patamares diferentes, que não é legítimo misturar e confundir no mesmo saco. Hereditariedade e herança são dois conceitos distintos, que nunca se devem confundir. Ao primeiro processus pertencem os gênes; ao segundo, os mêmes.
No firmamento da História nacional lusa, temos vindo a misturar e a confundir, desde há meio milénio, os dois patamares: o da Cultura e dos mêmes e o da Biogenética e dos gênes. Por isso mesmo:
A) Não sabemos e continuamos sem saber o que é o espaço público, a Opinião Publica; e não temos Sociedade Civil (o que J.G. não chega a identificar e a denunciar no seu livro).
B) Não sabemos distinguir (e continuamos a sobreviver na santa ignorância quanto à matéria...), no processo do Conhecimento, o que é subjectivo e o que é objectivo.
Não somos capazes de discernir e identificar pautas de Objectividade, no que eu chamo o hemisfério das ciências sociais e/ou humanas.
Quanto às heranças da Tradição e da Cultura nacionais/lusas, noa planos oficial e oficioso, é sabido que não temos sabido assumir, historicamente, atitudes e posições críticas em seu confronto. Bem pelo contrário... Temos confinado o nosso estar/ser nacional à trempe espúrea e bastarda das ordenanças e das submissões e dos mimetismos. E continuamos a ter receio de encarar, criticamente, o património cultural e as tradições nacionais, v.g., com os instrumentos da Desconstrução derridaísta.
No horizonte ideológico-cultural anglossaxónico (estigmatizado por um Darwinismo degenerado e mal-entendido), a rubrica televisiva Discovery (que tem frequentemente espaço cativo no Canal 2 da RTP), muito especialmente no que tange aos programas sobre a vida selvagem do animais, é useira e vezeira na admissão e promoção, ideológicas, de «barbaridades» e atrocidades sanguinolentas, entendidas como um dado vulgaríssimo na Natureza. O que desta sorte se pretende promover e incrementar é a competição, a luta pela vida dos animais, que, na Biogénese, antecederam a emergência  da Espécie bio-sócio-psicológica Sapiens/Sapiens. Como se a Evolução biogenética, ao atingir a Espécie Homo Sapiens/Sapiens, não tivesse dado um salto qualitativo (nos seres que sabem que sabem!...) e tivesse, absurdamente, a sua engrenagem de girar em roda livre ao longo de todo o espaço-tempo restante do cosmos!... Para nós, e outra gente crítica, o intuito inconfessado e oculto é obvio: estabelecer o curto-circuito e reduzir a Vida psico-social dos Humanos a uma «vida puramente biológica».
Ora, se há povo capaz de cair logo na referida armadilha anglossaxónica, ditada pela sempiterna Cultura do Poder-Dominação d'abord, esse povo é precisamente  o português que, desde há cinco séculos, tem sido mobilizado e industriado no sentido de misturar e confundir o natural e o cultural, a Natureza e a Cultura, os gênes e os mêmes. Nestas calamidades e degenerescências, os portugueses são pioneiros (na sua condição passiva de sequazes, obedientes e obrigados...): eles parece que figuram em 1° lugar nas «estatísticas».
Na verdade, o que é mesmo essencial e decisivo no fenómeno da especiação própria do Homo Sapiens/Sapiens é o Altruísmo e a Cooperação (identitária), não o egoísmo e a competição usque ad mortem, modo de actuação que é hoje imposto, ditatorialmente, às sociedades humanas, pelo neoliberalismo capitalista, sob as mais disfarçadas formas da concorrência e da competitividade (aparentemente  vitais, mas realmente mortais).
Hoje em dia, nas ciências sociais e/ou humanas, em nome da sacrossanta objectividade científica (que não é outra coisa senão objectualismo idolátrico...), fazem-se investigações/requisitórios da mesma índole bufarinheira das que fazia, tradicionalmente, a Igreja, com os seus manuais panópticos de confessores e a actuação em conformidade dos confessores, que procediam à devassa libidinosa e despótica de toda a vida sexual das pessoas e dos casais!... Até quando?!...

1) - Relógio d'Agua, Lisboa, 2004.


  
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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