Nos últimos 10 ou 15 anos, presenciamos um boom do discurso da memória. Por mais paradoxal que possa parecer, mesmo o novo está, cada vez mais, associado ao passado. Nossa cultura não é, entretanto, apenas mnemônica; é também inerentemente amnésica. A mídia, com suas intrincadas redes de informação e seus acelerados ritmos de transformação tecnológica, induz cada vez mais ao enfraquecimento da consciência histórica. Neste quadro, como pensar a memória e o esquecimento juntos? Debruçado sobre seus projetos, o ser humano destrói, transforma, reinterpreta as imagens e as palavras daquilo que se torna, através desta atividade, o passado. A subjetividade da memória, seu ponto essencial e vital, consiste precisamente em rejeitar a pista ou o armazenamento no passado a fim de inaugurar um novo tempo. A relação da memória com o esquecimento só pode ser entendida nos quadros da crise da modernidade e da sua ideologia de progresso e utopia. Vivemos uma reorganização da estrutura de temporalidade, em que o futuro deixa de ser pensado como dinâmico e superior e parece dobrar-se numa volta ao passado. A restauração de centros urbanos, a onda de antiquários, a moda retrô, a nostalgia, a literatura confessional e memorialista, os bancos de dados, tudo parece indicar que o museu se tornou o paradigma-chave das atividades culturais contemporâneas. A obsessão pela memória expressa a necessidade de ?âncora temporal? em uma época em que os processos técnicos estão transformando radicalmente as nossas vidas. Para codificar o seu saber, as sociedades sem escrita desenvolveram técnicas de memória que repousam sobre o ritmo, a narrativa, a identificação, a participação do corpo e a emoção coletiva. Contudo, hoje, certas representações não podem sobreviver por muito tempo numa sociedade sem escrita (cifras, quadros, listas), ao passo que se pode arquivá-las facilmente tão logo dispomos de memórias artificiais. A memória não opera a partir da simples recuperação do passado; ela é busca, procura que se faz a partir de um lugar: o presente. A memória é viva, dinâmica, distinta do arquivo, porque responde necessariamente às demandas de nosso aqui e agora. Não se deve esquecer que a elaboração da memória e o ato de lembrar são sempre individuais: pessoas, e não grupos, se lembram. Mesmo quando Maurice Halbwachs afirma que a memória individual não existe, sempre escreve ?eu me lembro?. Por outro lado, Halbwachs descreve como um processo individual, até solitário, uma atividade essencial da memória: o esquecimento. Se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira; sabemos que não é assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos e sociedades modernos, extrai memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincrática. Como todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história ?social?). Ela só se torna memória coletiva quando é abstraída e separada da individual: no mito, no folclore, nas instituições que organizam memórias e rituais num todo diferente da soma de suas partes. Quando compreendemos que ?memória coletiva? nada tem a ver com memórias de indivíduos, não mais podemos descrevê-la como a expressão direta e espontânea da dor, luto, escândalo, mas como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediada por ideologias, linguagens, senso comum e instituições. Não podemos continuar procurando oposições somente entre campos da memória, e sim também dentro deles. Na verdade, a pressão para não esquecer, preserva as lembranças de determinado grupo, materializando o controle social. Por ser gerada individualmente, a memória só se torna coletiva no mito, no folclore, nas instituições e por delegação (quando uma história condensa várias histórias), naquela que Alessandro Portelli (1996, p. 128) chama, numa feliz expressão, de ?memória dividida?. A memória coletiva, assim, longe da espontaneidade que muitos lhe atribuem, seria mediatizada por ideologias, linguagens, senso comum e instituições, ou seja: seria uma memória dividida.
Referência bibliográfica PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996 (103-130).
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