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Escolarizar o desporto, desportivizar a escola e a Vida

Do Ano Europeu da Educação pelo Desporto restou o fracasso de Portugal nos Jogos Olímpicos de Atenas, vários municípios endividados na sequência do Euro-2004, impressionantes fugas ao fisco, detenções e, sobretudo no futebol, muitos arguidos em processos de alegada corrupção. Na Escola, aí, no centro das políticas educativas, onde tudo deve começar, rigorosamente nada aconteceu.

Tal como destacou Mário David Soares, no Jornal da Fenprof, alguém, porventura, se lembra de alguma iniciativa portadora de futuro naquele que foi o Ano Europeu da Pessoa com Deficiência?. E agora questiono eu: mais recentemente, alguém será capaz de referir uma só atitude política no decorrer do Ano Europeu da Educação pelo Desporto, capaz de renovar e alimentar a esperança portuguesa de um desporto ?direito de todos??. Infelizmente, deste último ano, retenho, o fracasso de Portugal nos Jogos Olímpicos de Atenas, vários municípios endividados até ao céu da boca na sequência do Euro-2004, impressionantes fugas ao fisco, detenções e, sobretudo no futebol, muitos arguidos em processos de alegada corrupção. Pelo meio, discursos de circunstância, genericamente ocos, como foram aqueles que escutei, no Funchal, por ocasião da pomposa cerimónia oficial de abertura do Ano Europeu da Educação pelo Desporto. Na Escola, aí, no centro das políticas educativas, onde tudo deve começar, rigorosamente nada aconteceu. Tudo permaneceu igual, numa enervante rotina onde sobressairam, numa aproximação a Shakespeare, ?words, words, words, nothing, but words?. Mais um ano de palavras, de supérfluos programas desportivos, em horário nobre, que nada acrescentaram, espaços do tipo pescadinha-de-rabo-na-boca, porque não vão além do golo falhado, das milionárias contratações, dos comentários em redor da arbitragem, numa arrepiante coscuvilhice que serve às mil maravilhas o embrutecimento e o desvio das atenções dos reais problemas do país no que, entre outras, à educação pelo desporto diz respeito.
O Ano Europeu da Educação pelo Desporto não deixou nada nem permitiu abrir a desejável janela de esperança. Teria sido, no mínimo, oportuno e sensato o aproveitamento do momento para multiplicar, por este país fora, um grande e sensibilizador debate nacional que questionasse velhos problemas de ordem económica, social, cultural e organizacional dos Sistemas Educativo e Desportivo. Um debate que, por exemplo, afrontasse a crise de identidade e de credibilidade social da Educação Física curricular, o caos a que os sucessivos governos conduziram o Desporto Escolar e a corresponde interface com o Sistema Desportivo. Um debate absolutamente necessário, agitador de consciências anestesiadas, no quadro do pensamento estratégico que, bastas vezes, A Página, desde há muito, vem fazendo eco através dos singulares textos dos Doutores Manuel Sérgio e Gustavo Pires. Um debate que equacionasse o drama vivido na escola e no desporto português e que tão bem foi sintetizado pelo meu Amigo Doutor Olímpio Bento[1]:

 ?(?) para a reconstrução da Educação Física assume particular relevância a revolução operada nos conceitos de corpo, de saúde, de estilo de vida activa e na educação ambiental. Mais, essa reconstrução é ditada por duas ordens de razões incontornáveis: 1. pela necessidade de renovação da própria escola, no tocante à sua configuração enquanto polo de cultura e de humanidade; 2. pela necessidade de influenciar o desporto institucionalizado que hoje ostenta as máculas de um paradoxo, ao afastar-se da cultura, da formação, da educação, do humanismo. Isto é, encontra-se em rota de colisão com princípios e valores que o fundaram como um sistema moralmente bom e resvala, cada vez mais, para a imoralidade, para o analfabetismo, para a incultura e para a trapaça. Sendo através desta área escolar que as crianças e jovens acedem ao contacto com o desporto, a escola não pode eximir-se da responsabilidade que lhe cabe nesta matéria (...) é, portanto, curial reconstruir esta área à luz de um lema como este: escolarizar o desporto ? desportivizar a escola e a vida?.

Pois bem, muito mais do que as iniciativas de carácter pontual, o Ano Europeu da Educação pelo Desporto deveria ter ido ao encontro das causas, rompendo com anacrónicas e ultrapassadas lógicas de funcionamento, orgânicas e programáticas, muitas vezes alimentadas por um cego corporativismo. É, de facto, de uma pobreza conceptual, face à realidade do País em múltiplos domínios, inclusive, no desporto, o próprio Comité Olímpico de Portugal querer apresentar uma candidatura à organização dos Jogos Olímpicos, quando o desporto não está escolarizado, quando temos a pior taxa de participação desportiva da Europa e a estatística nos mostra um quadro de menoridade competitiva no contexto das nações, bem evidente no facto de, em 108 anos de Jogos Olímpicos da era moderna, Portugal ter somado vinte medalhas, entre as quais, apenas três de ouro. Entretanto, para o Projecto Olímpico Pequim 2008, o Governo disponibilizou mais de 9,5 milhões de euros para a repetição do fracasso, digo eu, hipotecando e deixando à míngua a Escola, o pobre e limitado desporto que lá se pratica e, por extensão, o futuro de Portugal. Para reflectir.

[1] B., Olímpio. Da Educação Física ao Alto Rendimento. Edição de O Desporto Madeira. 2001. Pág.: 83


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

André Escórcio
Mestre em Gestão do Desporto. Professor do Ensino Secundário, Funchal
André Escórcio
Mestre em Gestão do Desporto. Professor do Ensino Secundário, Funchal

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