Página  >  Edições  >  N.º 143  >  Só por si a lucidez nem sempre nos leva a bom porto

Só por si a lucidez nem sempre nos leva a bom porto

Não é seguro que a lucidez, só por si, nos leve necessariamente a bom porto. Muitas vezes os povos tomam decisões lúcidas que ninguém parece querer ou saber aproveitar. Embora sendo uma verdade «à La Palice», tudo depende do nosso empenho e do sentido ou dos sentidos que damos aos acontecimentos. Nas últimas eleições uma maioria de portugueses decidiu romper com a situação e criar uma outra nova. Que sentidos daremos aos próximos tempos? Vamos começar a resolver velhos problemas? Apostamos no conflito pelo conflito? Acentuamos a discórdia em torno dos pequenos interesses? Damos a conhecer com clareza os nossos projectos de sociedade? A ver vamos.

Fique sabendo que nos Estados Unidos um condenado à morte não pode ser executado se tiver gripe. Uma ponta de febre, uma inflamação nos olhos ou outras pequenas mazelas também adiam a execução. Primeiro cura-se o condenado e depois é que o executam, é lógico.
Em alguns estados o condenado também se livra da execução se for suficientemente tonto. Mas para isso é preciso provar que é mesmo tonto. Por isso fazem-lhe testes de inteligência, em cada manhã, e enquanto for dado como idiota o condenado livra-se da cadeira eléctrica.         
Foi o caso de Daryl R. Atkins, um negro que entrou na prisão oligofrénico, isto é, sofrendo de atraso mental. Ora aconteceu que para matar o tempo o Atkins conseguiu autorização na prisão para trabalhar. E à custa de trabalhar, trabalhar e trabalhar ficou lúcido. Ou melhor, os juízes vendo-o trabalhar concluíram que o trabalho lhe devolvera a lucidez. Pois se ele era capaz de entender os problemas do trabalho também tinha entendimento bastante para perceber a execução. Resultado, foi dado como pronto a ser executado.
Daqui se conclui que neste mundo a lucidez por vezes não leva a nada de bom. Quanto mais lúcidos mais expostos estamos à cadeira eléctrica ou a outra qualquer forma de execução. Mesmo dessas mais vulgares com que tropeçamos no nosso dia-a-dia.
Se o grau de inteligência do Atkins, antes de lhe ter dado para o trabalho, lhe tivesse permitido perceber o funcionamento das sociedades e dos estados civilizados quanto não daria ele para voltar aos bons tempos da oligofrenia? Ou, pelo menos, o que não seria ele capaz de fazer para ter uma pneumonia, uma hepatite B ou, melhor ainda, um enfisema pulmonar como o meu que se arrasta e não se cura?
É claro que as pessoas menos atentas aos mecanismos e ao rigor desta justiça civilizada podem pensar que se o nosso Atkins recuperou a inteligência ele podia descobrir uma forma de se suicidar e desse modo fugir ao terror e pesadelo da execução. Mas nem pensar! As sociedades civilizadas são muito bem organizadas.
Nos Estados Unidos da América, e noutros países civilizados, onde impera a pena de morte, é absolutamente proibido aos condenados à morte cometerem suicídio. O suicídio, além de imoral e contrário às religiões dos povos civilizados, é um crime grave. Por essa razão as celas dos condenados à morte são cuidadosamente construídas, normalizadas, inspeccionadas, arrumadas e delas é retirado todo e qualquer objecto que possa permitir o suicídio. Como todo o cuidado é pouco, os condenados são obrigados a barbear-se com máquinas de barbear suficientemente rombas para impedir qualquer tentação suicidária, ou então, para maior segurança, recorre-se a um barbeiro de confiança.
De acordo com os especialistas, os testes de inteligência mostram que o coeficiente intelectual sobe ou baixa ao longo da vida e pode variar de dia para dia e mesmo ao longo das horas do dia. Há quem seja mais inteligente logo pela manhã e há os que só recebem a inteligência a horas tardias. A notícia que dava conta da execução do Atkins não nos informava a respeito da inteligência dos juízes que decidiram que o condenado já estava suficientemente esperto para ser executado. Mas a inteligência dos juízes dá-me que pensar. Como dão que pensar possíveis encontros e desencontros dos graus de inteligência.
Se não vejamos. Se um indivíduo tem o azar de ser mandado para o corredor da morte é conveniente mover-se com cuidado. É que pode dar-se o caso de o condenado se cruzar com os juízes num momento em que ele, o condenado, está no seu pico alto de inteligência e o juiz no seu pico baixo de inteligência. Um contraste destes levará um juiz em baixa a sobrestimar a inteligência do condenado e a dar a ordem de execução.
Como tivemos ocasião de observar nos últimos meses, com o governo que agora se foi, não há nada de mais dramático que um desencontro de coeficientes de inteligência, sobretudo quando um deles está investido do poder de mandar. Nós vimos muito bem no que deu um governo com a inteligência em baixa e um povo com a inteligência em ascensão.
Li nos jornais, que no mesmo dia em que os juízes consideraram o Atkins preparado para a cadeira eléctrica, ocorreram vários fenómenos estranhos. E não só na América. Por exemplo, nesse dia baixou extraordinariamente o coeficiente intelectual, já de si baixo, do presidente dos Estados Unidos da América, senhor George Bush. Baixou tanto que ele ordenou, nesse mesmo dia, que se fizesse um corte radical nos fundos dedicados aos gastos sociais de modo a permitir aumentar os gastos com as despesas militares do seu país.  Em Portugal, nesse mesmo dia, está sobejamente provado, que uma maioria de portugueses teve um pico no seu coeficiente de inteligência. Foi votar e reformou o governo que manifestamente andava há muito com o coeficiente de inteligência em linha descendente.
Claro que nós não compreendemos bem, e muito menos controlamos, estes fenómenos complexos que ocorrem nas sociedades civilizadas e complexas. Se compreendêssemos não precisávamos dos comentadores dos jornais, rádios e televisões, sejam eles o Luís Delgado, o José Manuel Fernandes ou o Carlos Magno. Nem precisávamos de explicações diárias de psicanalistas como Júlio Machado Vaz  ou Carlos Amaral Dias. E é por não percebermos, apesar (ou por causa?) das explicações diárias que eles nos dão, que nós ficamos cada vez com mais dúvidas.
Será que o baixo coeficiente de inteligência é responsável pela agressividade? Terá sido em estado de tonto que  Atkins cometeu o seu crime? Bush optou pelas armas contra os gastos sociais ao ser acometido por um disparo dos seus níveis de agressividade? Este presumível disparo de agressividade foi causado por uma quebra no seu já débil coeficiente de inteligência?
Nesse dia, em que os juízes decidiram que o coeficiente de inteligência de Atkins estava em alta, que terá o condenado pensado da decisão de Bush? E ele, oficialmente lúcido, que pensará agora de si mesmo? Fará comparações entre o seu estado actual de lucidez com os tempos da sua juventude quando, oligrofrénico, tonto, trocava os livros pelas armas? Como é que Atkins, agora inteligente, verá o mundo de que está prestes a despedir-se?
E nós por cá, que vamos fazer no próximo futuro? Como nos vamos sentir: condenados ou livres para agir? Que vai fazer cada um de nós, e nós juntos, com esta dádiva que o povo, com o coeficiente em alta, nos deu no mesmo dia em que Atkins recuperou oficialmente a lucidez e com ela o direito de ser finalmente executado?


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo