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Teatro e arqueologia

Foi sempre isso [o espectáculo do mundo] que, de uma maneira mais artesanal ou mais sofisticada, nos forneceu o teatro (em grego, esta palavra significa o sítio de onde se vê o espectáculo): sentarmo-nos diante de um palco, deixarmos que as cortinas se abram sobre uma realidade fabricada, mas parecendo acontecer naquele instante (o que até certo ponto é real), e deixarmo-nos envolver, fascinar, como se ela fosse a própria vida.

Estamos numa sociedade de indiferenciação entre real e virtual, caracterizada pela imagem e pelos ?media?, pelo espectáculo, pela rapidez vertiginosa da fruição de experiências, atmosferas, ambientes. Vivemos (M. Augé), mergulhados na ?evidência?, no ?eterno presente?, numa realidade que está ?cheia até mais não poder?. Numa sociedade caracterizada pelo ?zapping?, pela ilusão de assistirmos ao espectáculo do mundo, à sua totalidade resplandecente, no espaço e no tempo.
Foi sempre isso que, de uma maneira mais artesanal ou mais sofisticada, nos forneceu o teatro (em grego, esta palavra significa o sítio de onde se vê o espectáculo): sentarmo-nos diante de um palco, deixarmos que as cortinas se abram sobre uma realidade fabricada, mas parecendo acontecer naquele instante (o que até certo ponto é real), e deixarmo-nos envolver, fascinar, como se ela fosse a própria vida. Encenar é falar verdade pela mentira; a começar pelos próprios actores, que, para encarnarem a personagem, têm de se confundir com ela. Têm de fazer, no palco, aquilo que fazemos na vida de todos os dias: representar papéis, assumir diferentes identidades, saber equilibrar a mesmidade e a alteridade, num jogo de máscaras permanente.
Ao utilizarem o seu próprio corpo como meio de trabalho, os actores despersonalizam-se, tornando pública a sua singularidade, e portanto expondo-a como um simulacro, isto é, como algo que lhes não pertence, que é de outra personagem que objectificam, que encarnam. Nessa sua nudez, nesse seu desamparo perante o público que tentam seduzir, os actores atiram-se para cima do fio da navalha:  um actor não pode falhar, isto é, tem de estar sempre entre o real (ele, como actor, está a fingir) e o virtual (a personagem tem de ter a verosimilhança necessária para ser ?verdadeira?, nos convencer, nos seduzir, nos envolver). Eles presentificam, reactivam, reincorporam toda uma experiência, para ser vivida como espectáculo, isto é, algo que nos deixa sempre entre dois momentos, dois mundos: o da ficção e o da vida real.
Nesta cumplicidade, ambos os elementos (actores e público) aceitam jogar esse jogo sério: uma ?brincadeira? que nos envolve todos, totalmente. Por isso o espectáculo performativo vem da religião e do ritual, e mergulha as suas raízes no mais fundo e íntimo de nós. Um corpo e um pedaço de espaço/tempo é tudo o que o teatro precisa para começar, para além da suposta aquiescência dos outros.
Representar é pois re-apresentar, fazendo de conta que tudo está a acontecer no presente, mas de facto reactivando forças, reminiscências, memórias, afectos, que vêm do passado ? de outro modo não seriam partilháveis, não suscitariam adesão. Transportando para a ?cena? o que noutros contextos/momentos seria ?obs-ceno?, ou seja, descabido, insuportável. Uma intensidade que se não compadece com a temporalidade humana, com as rotinas quotidianas.
O teatro é a distracção em relação a essas rotinas, a fuga à banalidade dos dias e da realidade contabilizada, extensa, para permitir a entrada na realidade mais real, intensa. Aqui de novo o paralelismo entre a representação e o ritual é evidente. É a crença profunda de todos no ritual, a sua capacidade de íman que atrai à participação, que permite libertar a energia colectiva de que o próprio ritual se alimenta, onde ele vai buscar a sua única possibilidade de se manter como ?a coisa séria por excelência?. Basta alguém externo que se não envolva, e o ritual pode ficar reduzido à sua condição de objecto estranho, exótico, senão selvagem ou, no mínimo, ridículo.
Não é outra coisa o que faz a arqueologia: jogar com todas estas ambivalências.
A arqueologia não visa tanto reconstituir o passado, como algo de distante, longínquo, como reactivá-lo, revivê-lo, apresentá-lo aos outros. Nesse sentido, tal como o actor, o arqueólogo é um mediador, um elemento que estabelece a ligação entre o presente e o passado, entre as experiências pretéritas e as presentes. O arqueólogo fala de uma ausência, mas que presentifica, não como nostalgia, ou perda, mas como acção ou produção actual. Acção a vários níveis: pela sua actividade como observador, como prospector, como escavador, como intérprete, como encenador de narrativas, pelo texto, pelo discurso, pelo museu, pela exposição, pela visita de sítios, lugares, paisagens, ou pela própria capacidade de ?pôr de novo as coisas a mexer?, fazendo a sua simulação ? a sua representação ? em espaços virtuais (computador) ou reais. O arqueólogo é pois, ele próprio, um actor, um comunicador, um intérprete, a quem a sociedade atribui um papel: o de representar o passado para usufruto colectivo, aqui e agora. Como qualquer peça de teatro.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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