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Cenas do cotidiano de meninos e meninas que vivem nas ruas

Numa bela tarde de Verão, um grupo de engraxates, psicólogos, guardadores de carro, atores e diretores de teatro, artistas plásticos, catadores de latinhas de cerveja e refrigerante, capoeiristas, com origens de classe, etnia e cultura diferentes, uns parte do grupo de excluídos, outros comprometidos com a mudança de uma sociedade tão injusta e excludente. Lá estavam juntos num bairro rico da zona sul da Cidade do Rio de Janeiro, mas estavam também próximos da maior favela da América Latina ? Rocinha.
Professores e alunos, mestres todos cada um em seu mister. Uns formados na escola outros formados na rua. Malgrado o desejo dos professores, os que vivem nas ruas contribuem no processo de aprendizagem de todos, através da contínua explicitação dos conflitos, contradições, tantas vezes escondidos pela ação dos professores mas inevitavelmente oferecidos pelo sofrimento e morte, pelos dramas de cada vida e pelas formas criativas, espontâneas, cheias de humor de enfrentar os problemas de seu cotidiano.
A situação que trago se refere a uma das inúmeras regras de convivência - mecanismo de que nos valemos  para pacificar os incontroláveis ?meninos e meninas de rua?, nossos alunos e alunas, que optam pela sobrevivência nas ruas, o que os/as leva a práticas consideradas ilícitas, como venda e consumo de drogas, pequenos furtos, roubos e destruição do patrimônio público. Todos sabem que uma das regras de convivência entre professores e alunos é que, se forem presos cometendo crime ou contravenções, não serão acolhidos pelos professores. Mas, desta vez, este contrato foi posto à prova.
É como afirma José Luis Vieira: ?no plano real, não se pode igualar o que é distinto ou tornar diferente o que é igual sem gerar ambigüidades e contradições, enquanto que esta é a principal característica do representativo. Na  realidade, as mudanças não são freqüentes, mas são efetivas?.
Vejamos então, como se processa a quebra e a manutenção de uma das regras de convivência:
Maria [nome fictício],  mulher de  vinte anos, com  aparência de quarenta,  órfã, criada na Rocinha, dois filhos ainda na primeira infância e carregando outro no ventre, está  na rua desde os doze anos, com idas e vindas à Rocinha. Sua vida é cheia de histórias de lesa, ressentimentos, mágoas, decepções, que a teriam levado a um comportamento anti-social. No final do ano anterior foi detida, juntamente com outros 16 moradores de rua, quando se encontravam reunidos em uma praça no Leblon.
No registro policial, os detidos são apresentados como pessoas ?em situação típica daqueles que pretendem cometer os delitos inseridos neste ato?, ou seja, os arrastões [vandalismo e roubo praticado por vários criminosos ao mesmo tempo]. Em reportagem do Jornal do Brasil em 04.01.2004, é dito que a polícia quis aplicar no elegante bairro do Leblon, em pleno século xxi, uma espécie de Minority Report, obra de ficção científica que fala de um futuro em que os policiais anteverão o crime e prenderão seus autores. Na ficção, os agentes cometiam erros na prisão dos culpados. Parece que na vida real também.
A prisão dos jovens provocou protestos de vários matizes:
Um grupo de alunos testemunhas da prisão de Maria, revoltados:
Os policiais deram um chute na Josefa e ela caiu no chão com a filha... E eles também prenderam a Maria e ela está grávida. Vocês não vão fazer nada? Eles são inocentes.
Os educadores sociais, movidos pelo sentimento de Justiça:
A não assistência judicial, não se aplica a este caso evidente de injustiça.. Só descansaremos quando conseguirmos libertá-los e provar que são inocentes...
Os profissionais da área psí diagnosticavam:
Eles estão no limiar de uma explosão catártica. Não vão suportar a prisão.
Os advogados vociferavam:
A prisão se deu pela reunião de pessoas pobres, negras, desempregadas, em uma praça nobre da cidade, onde estas pessoas são mal vistas, rejeitadas e apontadas como perigosas.
A Justiça e o Ministério Público:
Pode-se verificar a inexistência de fato delituoso imputado aos réus.
Maria e os outros alunos permaneceram presos e só após 40 dias foram libertados.
Maria fora presa um mês depois do Natal, acusada de um furto mal sucedido e presa pelos policias da mesma delegacia... Encarcerada no mesmo lugar, onde conhecera e identificara-se com Joana, uma presidiária que lhe dera proteção, enxugara suas lágrimas, dera-lhe colo e afeto.
Não existe matéria de jornal, nem tampouco manifestação de revolta alusiva à prisão de Maria.
Os alunos e alunas que vivem nas ruas estão conformados com a sua prisão:
 - Maria ?rodou? [foi presa]. Também ela estava tentando roubar um  toca-fita.
Os profissionais da área psí diagnosticaram:
- Ela precisa esgotar o processo de repetição. A internação talvez seja oportuna para desbloquear seus traumas e para que possa re-pensar a sua vida.
Os educadores teceram comentários em nome dos acordos de grupo:
- Não podemos quebrar o contrato neste caso. Perdemos uma aluna, para continuar o trabalho com 60 alunos.
Os advogados sentenciaram:
- Mas, ela confessou o crime... E...
A Justiça e o Ministério Público:
Pode-se verificar a existência de fato delituoso imputado à ré.
Maria presa. Maria sem visitas... Bendito o fruto do vosso ventre, gravado com as marcas da prisão...
Maria presa pela inflexibilidade das convenções sociais, pelo fazer politicamente correto, pela banalização de sua dor...  Presa pelas convenções das teias sociais, que nos deixamos tecer, malgrado o nosso desejo, o nosso destino.
Maria permanece como sempre fora - escrava.  Permanece manietada pelas indolências, presa em suas próprias teias tecidas como as de Penélope.
Sabe-se que se pode libertar apenas as pessoas livres, mas, não há necessidade disto, visto que pessoas livres, libertam-se a si mesmas.
Nós, educadores e profissionais com diversas formações, algumas vezes precisamos seguir os fluxos transgressores da espontaneidade, identificar e desmilitarizar convenções que nos aprisionam e por extensão aprisionam os nossos alunos.
Estou convencido que a prisão de Maria é a nossa própria prisão.  A luta em prol da liberdade de Maria, é a luta em defesa de nossa própria liberdade.
Escrevo em Fevereiro. Mês de Fevereiro, véspera de carnaval, Maria continua presa...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Maurício Camilo da Silva
Grupalfa - Pesquisa em alfabetização das classes populares, Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
Maurício Camilo da Silva
Grupalfa - Pesquisa em alfabetização das classes populares, Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro.

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