Página  >  Edições  >  N.º 141  >  O privilégio de poder ser ensinado

O privilégio de poder ser ensinado

Herdámos da Modernidade a ideia de que o espaço de realização pessoal será tanto mais alargado quanto maior for a capacidade de intervenção do sujeito. (?) Mas será efectivamente assim?

«A liberdade de cada um termina quando começa a liberdade do outro». Tradicionalmente ensinada e adoptada com a força de um imperativo moral, esta máxima faz-nos pensar o mundo como um território de ocupação e de conquista disputado com a pluralidade de outros que, assim, passam a ser olhados como estorvo ou ameaça.
Herdámos da Modernidade a ideia de que o espaço de realização pessoal será tanto mais alargado quanto maior for a capacidade de intervenção do sujeito. A partir daqui, os lugares de cidadania surgem-nos configurados por linhas de demarcação próprias de uma geografia concebida à medida da soberania individual e, como tal, pouco permeáveis à entrada do outro, do diferente. A imposição de limites formais surge então à consciência como um mal necessário, como contrapartida, por vezes frustante, da garantia de satisfação dos direitos que reclamamos como essenciais.
Mas será efectivamente assim? Será esse o preço a pagar pela liberdade de ser, persistindo em tentar ser cada vez mais e de outro modo?
Interiorizadas na ligação a um quadro de referência axiológica que elege o outro como limite, as leis morais e sociais acabam por adquirir o sentido de uma abdicação. Ora, a liberdade não termina, antes começa, com a entrada de outras pessoas na esfera do nosso existir. Ao contrário das coisas que alimentam e dão conforto à relação pessoal com o mundo, o outro ser humano é mesmo outro, na medida em que, como cada um de nós, é senhor de uma interioridade. Que, em rigor, é o mesmo que dizer que é senhor de outra liberdade. Nessa condição, traz o testemunho uma história de vida com começos, meios e fins que não dependem do nosso poder e que, exactamente por isso, nos traz algo de novo. Nos ensina, portanto.
Na verdade, face a outra pessoa estamos sempre a aprender. Relacionarmo-nos com outro ser humano significa entrar em contacto com outras vivências, outras memórias, outras mágoas, outros sonhos. Daí a deferência que nos merecem as rugas que mapeam o rosto envelhecido, denunciando o atraso com que chegamos, sempre e inevitavelmente, ao encontro de outra pessoa, conforme ensina Lévinas.
Por inerência da função que desempenham, os educadores trabalham na zona de contacto interpessoal, sendo por isso convocados para a tarefa de ajudar a desenhar outra geografia humana. Uma geografia que, seguindo a lição de Daniel Innerarty, deverá ser mais centrada em categorias temporais do que espaciais. Neste caso, uma geografia desenhada por recurso a marcos que nos permitam evidenciar o respeito pelo tempo do outro, como a sensibilidade, a paciência, a atenção, a escuta e a ajuda. Para que possa ser democrática, solidária e justa, a sociedade do conhecimento precisa alicerçar-se neste tipo de valores. Ébrios de encantamento, fascinados pelas extraordinárias possibilidades proporcionadas pela era tecnológica, somos muitos vezes levados a confundir o desejo de aprender com a sede do vampiro, pronto a arrebatar a diferença do outro, possuindo-a como coisa ou alimento. E é toda a utopia do humano ? a da realização da humanidade em cada homem ? que assim fica em causa.
Se não aprender a ligar-se à prática de acolhimento de verdades outras, produzidas para lá do poder de apropriação ou de decisão, a liberdade envelhece tristemente, permanecendo refém da sua própria mesmidade, sem justificação ou sentido. Confrontando-nos com horizontes novos, com um mundo vivido, sofrido e sonhado fora de nós, a liberdade do outro desperta a nossa própria liberdade, incitando-a a transcender-se continuamente. Investido de uma responsabilidade social ? ética ?, o agir humano carece de regulação e de obediência a princípios comuns, mas fazer depender a legislação moral de sentimentos negativos face ao outro significa abrir a porta ao totalitarismo, à prepotência e à xenofobia, privando-nos, enfim, do privilégio de poder ser ensinado.
Na sua condição de educadores, os professores honram esse privilégio no exercício quotidiano da responsabilidade de iniciar outros, os educandos, no labor da aprendizagem que, como sabemos, requer disciplina, esforço perseverante e respeito pela autoridade daquele que ensina. Mas honram-no, também, e necessariamente, quando se abrem, eles próprios, à dimensão de imprevisto que toda a relação de ensino comporta. Para aprender, seja qual for o lugar ou o tempo do aprender, é necessário que, antes de tudo, nos deixemos ensinar, mesmo que isso implique dificuldades, inquietações e quebra de rotinas. Lembrando Nietzsche, «é preciso ser capaz de albergar um caos para parir uma estrela que baila». Escutar outra pessoa, entrar em relação, pode, de facto, fazer nascer um caos dentro de nós. Mas é aí, afinal, que começa a liberdade, na possibilidade de aprender a ser mais, arriscando a ser diferente.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo