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Devaneios

Caio da cama. Odiosa gravidade, essa que me empurra à realidade. Já destituído da inércia que o dormir provoca mas não totalmente da preguiça de quem é subitamente acordado, levanto-me; encontro-me sozinho, talvez por isso, ou por qualquer outro daqueles motivos que dão razão ao destino, abro a janela; o vácuo que aquela queda prematura me criara reclamava vida; olho, mas a rua é um espelho sem fundo; buscas no infinito alguém que te observe, inútil esforço, fortalezas guardadas, almas muradas que se inclinam para dentro e se baixam para fora; aquela rua, poço fundo, supostamente iluminado, aquelas pessoas, buracos escuros, iluminados se supõem, das trevas, confortável ilusão, do céu, terrível encantamento; tento fechar a janela, impossível; o vento é forte demais; arranca-me o discernimento, descaem-me as forças, rendido ao empurrão caio em consentimento; palpitando angustioso o coração reclama, sozinho, só, de mim apenas ele; desesperado luta, o anónimo oculto torna-se o herói real; aquela força é poderosa, tudo gira, controlados nós estamos, caímos no buraco, luz, não; as sombras são madrastas sensíveis, engolem-nos na opacidade; aqui julga-se ver, espécie da cegueira, muito pior porém; o pecado assimila a virtude, e assim caminhamos, sem discernir verdades de mentiras; pessoas, sim, cegos, vendidos, corrompidos, traidores, sim, somos pessoas; o jogo é complexo; os níveis dispersos; os jogadores perversos; os jogados, nós a massa que escalda na sombra, vítimas; as jogadas principiam o abismo em tons de paraíso, qual rio que acaba em cascata; devaneamo-nos em brilhos, paralelas sensações, brilho intenso que arruma a luz fraca e nos condena à prisão do homem com cabeça mas sem coração; delícias fugazes contentam-nos o ócio duma cabeça, manca de espírito, sedenta de instantâneas miragens, prazeres hipócritas que nos roubam a alma e nos consomem a matéria; enganados, conscientes caímos no erro, mas gostamos, é assim o espírito humano, terrível destino;
o tombo, parte final, derradeiro contentamento, relutantes agarramo-nos a sei lá o quê, coisas, matéria, pó que se desfaz como tudo o que é visível; capitulação, evaporo, o irado vento desaparece, nada, apenas ele, majestosamente batendo, agora que tudo é nada é, só ele, o coração, que do nada se torna tudo.

Rui Lourenço


  
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N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

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