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O Ramadão do Natal

Para Ans van Emden e os seus netos Tomás e Maira Rose.

Dois conceitos diferentes dentro de uma aparente contradição. Ramadão, luto islâmico para comemorar a festa da vida que salvaria o mundo ou concepção do Alcorão a Muhamed pela sua divindade; Natal, festa cristã a seguir ao Anuncio ou Advento, a melancolia prévia à comemoração de um Nascimento que salvaria a vida humana. Como acontece no quotidiano da vida. Como acontece a esse puto que pergunta à sua avó: ?É verdade que vais morrer?? e ela responde: ?Gostaria que fosse possível salvar a minha vida e te acompanhar sempre!?. Ramadão e Advento do pequeno ao entender, com surpresa, que uma mulher nova e querida o vai abandonar e nada mais lhe vai contar, dizer, acarinhar, beijar. Contar essas histórias que entretêm o mais novo, acarinhar ao passar as mãos pelo cabelo, ao dizer ?que lindo que está meu menino, tão bem penteado por mim?, e o puto orgulha-se dessa vida tão activa que trata da sua. Começa o Ramadão, talvez cumprido, talvez distante, mas de certeza triste. Jejum e abstinência, como no Advento. Porque é-lhe dito que a avó estará sempre com ele, em pessoa ou em espírito, enquanto cresce. Entre pais, pequeno e avó, vai-se falando sobre o seu iminente desaparecimento físico, e passar a fiel companheira de rota que vai pentear o pequeno através das mãos do neto, como ela ensinou desde o primeiro dia, essas simples materialidades tão complexas para uma criança. Criança, um ser entre o nascimento e os quatro anos de idade. Sábios pais que sabem falar primeiro com o filho de um tema socialmente tabu. Corajosa avó, previamente advertida, apesar das suas dores, de saber que o pequeno conhece a sua condição, não faz birras, fica sereno, embora triste, atitude que acalma o medo dos adultos.
Um modelo? Uma receita? Uma modernidade? Um conselho erudito? E porque não apenas um intenso carinho entre todos esses seres ao tentar fechar, tanto quanto possível, a brecha da dor. Emotiva em três deles, e sentimental e física no caso da avó. Essa mulher nova, cheia de amor pelos seus, que ajuda a criar os seus descendentes. Uma mulher que, ao longo da sua curta vida, soube espalhar amor e entendimento entre os seus. A trabalhar para ganhar a vida e acompanhar o seu homem, tomando conta dos filhos. Filhos que aprendem, com ela, a procurar mulheres semelhantes à mãe que desfalece no seu Ramadão, no seu Advento e prepara, com todo carinho e no meio da dor, o necessário prolongamento do Advento pré Natalício, esse Ramadão que, como sabe, levou-nos um herói ao seio de Abraão. Metáfora partilhada por tantos e ensinada por ela aos seus descendentes, com o nome cristão de encontrar a Glória Eterna.
Preparar o saber e dizer esta história de toda uma vida, de repente, sem saber prévio, de um dia para outro, que se vai desaparecer em breves horas, é uma historia que, ou mata logo, ou faz crescer. Sabemos, por dura experiência, essa aparente normalidade com que transcorre a vida: os avós morrem velhos, com filhos maduros e netos crescidos para entender, com tempo para se prepararem. Quando essa normalidade passa a ser surpresa, porque ninguém imagina que uma oculta doença ameaça um corpo forte, trabalhador, disciplinado, cheio de boas intenções e virtudes éticas, aprendidas nos Textos do Mar Morto ? hoje Alcorão e Bíblia ?, aprendida no sacrifício de uma vida de intenso trabalho, depreendida dos seus ancestrais, pais, avós, parentes, todos eles a viver uma ética de interacção e carinho irrenunciável, transferida, queira ou não, à geração seguinte! O puto fica triste, os pais não têm palavras, o Natal previsto é ausente, o dia a dia continua como normal, mas a dor da avó prolonga o Advento que, com calma e tempo, sabemos deve acabar a seguir a tanto sofrimento. A criança percebe e acarinha os seus adultos.
Anunciar a morte de um ser querido é tarefa difícil demais para um adulto transferir aos seus pequenos. E, como é habitual, há silêncio, não se explica, nada se diz e esse silêncio, observado o motivo, fere mais a criança que uma conversa curta, sã, directa. Não é receita, é uma ideia emotiva que alivia a dor de todas as gerações envolvidas e que precisa da ética praticada com amor, ao longo da vida. Ideias para pensar no nosso luto que começa bem antes em conjunto com a pessoa que o causa. Entre as feridas materiais triunfa a concepção do amor infinito. Derradeira lição de sabedoria, amor e compreensão, para mim e os meus discípulos. Não sou crente, mas tenho uma nova fé derivada da herança doada a mim e a todas as famílias que podem aprender, acabado o Ramadão, na base deste Natal.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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