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Rememorar a África de Amílcar Cabral

No passado mês de Setembro, realizou-se em Cabo Verde um simpósio internacional para celebrar o octogésimo aniversário do nascimento de Amílcar Cabral   e os trinta anos da independência das ex-colónias portuguesas de África, no qual estiveram presentes, ao lado de antigos companheiros da luta de libertação nacional, como Aristides Pereira, Luís Cabral, Pedro Pires, Carmen Pereira, Eugénia Neto, Joaquim Chissano e Marcelino dos Santos, os portugueses Mário Soares e Almeida Santos.
Segundo o relato de um jornalista português que cobriu o evento, Almeida Santos salientou uma evidência que orgulha todos os caboverdianos, independentemente das suas motivações: ser   Cabo Verde "o único Estado nascente do antigo espaço colonial português que, longe de regredir, progrediu".
Logo nos aflorou à mente a reflexão "cínica" (o termo é dele)  do politólogo americano, Fareed Zakaria, sobre a "maldição" que envolvia a maioria dos países potencialmente ricos, mas socialmente atrasados, do Terceiro Mundo: "A riqueza em recursos naturais compromete a modernização política e o crescimento económico (...) porque eles impedem a emergência de instituições políticas, leis e administrações modernas", antes  propiciando o surgimento de políticos "cujo único objectivo é fazer crescer a sua fortuna e o seu poder. Num país destituído de recursos, o enriquecimento do Estado tem como objectivo que a sociedade também enriqueça, a fim de que o Estado possa tributar essa riqueza."   
Zakaria citava exemplos bem conhecidos, nomeadamente em África, em que Estados "trust-fund" emergiram das independências como "gestores de um património que cresce graças às receitas das matérias-primas e do petróleo e não têm de se aplicar na tarefa, muito mais difícil, de criar um sistema de leis e de instituições que possam gerar riqueza nacional."
Mas a  questão é muito mais ampla do que aqui se perfila, e já outros líderes africanos, como Nkrumah, Touré ou Agostinho Neto, que uma sintomática desmemória dos seus sucessores vem sendo consentida "pro domo sua",  alertavam para as deformações culturais  que Cabral elencava  no congresso do PAIGC de Cassacá, em 1964: "clientelismo, servilismo, espírito de clã, poligamia, bajulação e racismo, considerado o oportunismo da pior espécie" - sem poder ainda imaginar que, por causa disso, também ele seria assassinado, em 1973, como César pelo seu "fiel" Brutus.
Sem subscrever uma epígrafe "cínica" como a de Zakaria, - "Abençoados sejam os pobres" - Cabral haveria de ter a  noção exacta de que, não estando identificadas promissoras riquezas naturais em Cabo Verde e na Guiné (ele era filho de pai caboverdiano e mãe guineense), a "intelligentzia" de Cabo Verde e o "úbere" da Guiné, como componentes  do mesmo tronco histórico-colonial, poderiam constituir um caso exemplar em África.
Alteradas as regras do jogo imposto pelas estratégias da geopolítica que os  Estados emergentes das independências em África eram obrigadas a seguir, para atingirem o seu objectivo (então, o Mundo submetido à Guerra Fria impunha escolher entre dois proteccionismos ou duas vassalagens), os sucessores sem memórias do tempo de Cabral (como de Neto, que também o passado  mês de Setembro recordou ter morrido há 25 anos), ufanos porque a globalização se impôs à socialização, não hesitaram em dizer naquele simpósio celebrativo: "Se Cabral fosse vivo estaria certamente orgulhoso do nosso país, de cuja independência foi o principal obreiro. E, no entanto, esse resultado foi alcançado não aplicando as suas teses ou em certos casos desaplicando mesmo algumas delas, [pois] nos seus aspectos fundamentais estão nos antípodas do modelo esboçado por Cabral."
É duvidoso que Cabral estivesse totalmente de acordo com esta opinião. Louvando, sem dúvida, a circunstância de Cabo Verde, mesmo sem a Guiné, manter viva e actuante a sua "intelligentzia", que fez do país flagelado pelo Vento Leste um caso de política exemplar em África,  ele acabaria por encolher filosoficamente os ombros, recusando o papel narcísico de  "corretor de passados".
No máximo, sendo ele um grande conhecedor  da história e do carácter dos humanos, mostraria  compreender como e porque haviam mudado as regras do jogo e os jogadores - mas não deixaria de afirmar  à mais nova geração  que a última palavra em história nenhum contemporâneo a escreverá.


  
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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