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E se acabássemos com o ensino unificado e outras coisas mais?

Nada existe de permanente a não ser a mudança (Heráclito)

Porque não permitimos aos alunos do básico escolher o seu currículo de um largo leque de oferta? Não será essa uma condição prévia para impedir que os alunos transitem de ano sem saberem nada de certas disciplinas? E porque não acabar, no secundário, com a dualidade ensino liceal - ensino tecnológico? O ensino liceal ainda tem algum cabimento? Não deve hoje todo o ensino ser tecnológico e profissional? E porque não deixar que o ensino superior escolha ele os seus alunos? É sustentável continuar a fazer do básico e secundário apenas um ensino preparatório para o superior? Isso não é a exclusão e o elitismo escolar levados ao limite?

Li num jornal que um militante do CDS/PP, com experiência de emigração na Suíça, defendia que a nossa escola devia seleccionar, logo de pequenos, os alunos com possibilidades de seguir estudos e os outros. "Na Suíça ? dizia o militante exaltado ? logo na primária, os professores vêm logo quais os garotos que têm cabeça para os estudos e quais os que têm músculo para a estiva".
Até 1974 a nossa escola fazia essa selecção entre os que aparentavam ter cabeça e os que aparentavam só tinham músculo. Isto é, entre os que respondiam ao padrão único e os que fugiam à norma. A selecção no ingresso era feroz. Uma grande percentagem das crianças não chegava a entrar na primária. Das que entravam nesta apenas uma pequenina percentagem passava ao ciclo seguinte. O funil era pequeno e o bico estreitíssimo.
Marcelo Caetano, num texto de 1934, a propósito da formação das elites, defendia que eram precisas pelo menos três gerações para o povo ambicionar chegar à universidade, à elite. Sito de memória: O filho de um analfabeto, com trabalho e perseverança, pode completar a escola primária. É possível que um filho deste, com muito trabalho e esforço, venha a ser um operário especializado e, reunindo condições naturais, pode um filho deste operário especializado ambicionar a universidade. Eis a hierarquia no seu esplendor.
Após a 2ª Guerra Mundial Portugal abriu-se timidamente à indústria e ao comércio. No final dos anos cinquenta e inícios de sessenta, o regime sentiu a necessidade de produzir alguma mão-de-obra especializada.  Ao lado dos liceus, destinados à formação livresca das elites destinadas ao mando, abriu as escolas industriais e comerciais destinadas a formar electricistas, torneiros mecânicos, soldadores, carpinteiros e marceneiros, canalizadores, guarda-livros, dactilógrafos, empregados bancários e até bordadeiras e doceiras. «Um país, dois sistemas». O liceu para os que tinham «cabeça», ou eram filhos de cabeças, e as escolas comerciais e industriais para os do «músculo». Uma estrada para os ricos e uma vereda para os pobres.
Com o 25 de Abril criou-se o ensino unificado. À boa maneira pequeno-burguesa desejou-se comer o bolo dos até aí dominantes sem inquirir das verdadeiras qualidades do mesmo. O ensino público liceal foi assumido como o ensino de qualidade. O ensino profissional, até então ensino dos pobres, foi repudiado. Confundiu-se igualdade com uniformidade. O poder da época não entendeu que «temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza» (B. S. Santos). Apesar de trinta anos de mudanças económicas e sociais e de toda a transformação da ciência e da tecnologia continuamos no ponto em que estávamos.
Há trinta anos que vivemos deste preconceito. No ensino básico, teimamos em não dar aos alunos, a possibilidade de escolherem disciplinas em que querem ter sucesso. Metade abandonam a escola. Da metade que fica mais de metade completa o ensino básico com aprendizagem nula a várias disciplinas. Preferimos que eles construam uma história de insucesso em vez de lhes permitir escolhas de sucesso. Porque não acabar com o currículo unificado?
No secundário mantemos o preconceito e a dualidade. Liceal ? os nomes variaram ? para os que almejam ser elite. Profissional para os fracassados do sistema. Pobres, ricos e remediados continuam a passar por aqui. E porque não acabar com o ensino liceal? E porque não considerar que todo o ensino secundário é tecnológico e mesmo profissional?
Já não estamos no tempo em que a ciência e a técnica progrediam por caminhos diferentes. Hoje, a ciência e a técnica fazem parte de um todo. Não há saber sem saber fazer.
É possível encontrar um núcleo de saberes obrigatórios de todos os cidadãos. São aqueles que nos permitem responder às exigências da vida e do nosso próprio desenvolvimento ao longo dela. Os saberes que contribuem para a coesão nacional. Esses devem ser os saberes obrigatórios. Os outros, sobretudo os que derivam da produção científica e tecnológica, são equivalentes. Que mal vem ao mundo e às pessoas se um cidadão souber música e outro matemática? O que perde a sociedade se um jovem escolher física e outro preferir biologia ou filosofia? Ensino Básico é um ensino rigorosamente igual para todos ou uma resposta educacional competente às necessidades de desenvolvimento do potencial básico de cada um? Uma certificação de igual valor pressupõe a frequência das mesmas disciplinas ou o reconhecimento da chegada ao mesmo patamar de competências ainda que em áreas não iguais mas equivalentes?
Importante é teimar em obrigar todos a comer do mesmo? O importante não será permitir a cada aluno construir na escola uma história pessoal de sucesso?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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