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"A ampliação do sistema educativo público não garantiu a democratização do ensino"

ALBUQUERQUE GOMES FACE A FACE

O face a face do número de Novembro é preenchido com uma entrevista a Alberto Albuquerque Gomes, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista e investigador da Unidade de Investigação e Desenvolvimento, Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Ao longo desta conversa, que, entre outros temas, se desenrola em torno dos novos sentidos para a escola actual, Albuquerque Gomes defende que mais do que responder às exigências sociais e económicas ela deve preocupar-se sobretudo em "ensinar".

Na comunicação que teve oportunidade de apresentar no IV Fórum Paulo Freire "Caminhando para uma cidadania multicultural, realizada no Porto, em Setembro, referia que "a ampliação do sistema educativo público a partir da década de 70 não garantiu a democratização do ensino". Que principais razões estão na origem desse falhanço?

Quando me referi ao facto de que a ampliação de vagas não não significou a democratização da sociedade, defendi a tese de que, apesar da retórica oficial de que o acesso de todos a uma escola pública e gratuita era um mecanismo fundamental de democratização da sociedade, na prática, aquelas crianças e jovens oriundos das classes populares historicamente exluídas dos sistemas de ensino, continuaram a sofrer um processo de exclusão dentro da escola, principalmente a partir da daterioração das condições de vida de grande parte da população menos favorecida. Evidentemente que me refiro especificamente ao Brasil e a Portugal, países que conheço melhor e dos quais pude dispor de dados  e informações mais concretos.
Porém, esse quadro pode ser verificado em outros países quando se investiga as taxas de insucesso escolar e quem são as principais vítimas desse processo perverso. O abandono escolar e o insucesso escolar denunciam a face mais perversa dessa "falsa democratização", ou seja, quando o aluno abandona a escola sem a conclusão da escolaridade obrigatória não está a cumprir-se a tarefa primordial da escola.

Aliás, tem números que sustentam a sua tese...

Sim, na comunicação que apresentei apresentei alguns dados sintomáticos desta situação. Segundo um relatório divulgado pelo Instituto nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Brasil, podemos contabilizar cerca de 30 milhões de brasileiros analfabetos com mais de quinze anos.
O que se passou então com a escola? Se considerarmos que o sistema educativo brasileiro se ampliou consideravelmente a partir dos anos 70, verificaremos a procedência deste argumento: a ampliação do sistema educativo público não garantiu a democratização do ensino.
Em relação a Portugal, segundo dados do Relatório do Plano Nacional de Prevenção do Abandono Escolar, em 2003 cerca de 40% dos alunos em idade escolar abandonaram precocemente o sistema educativo e 48% dos jovens entre os 18 e os 24 anos está fora do ensino e inseridos no mercado de trabalho.
Segundo o mesmo relatório, em Portugal, considerando-se um índice 100, o salário médio de um trabalhador sem qualificação de nível secundário é de cerca de 60, enquanto que o salário de um trabalhador com formação superior é de cerca de 180.
Quando os dados se referem aos trabalhadores desempregados, são ainda mais assustadores: 75% dos trabalhadores desempregados em Portugal possuem habilitações escolares não superiores ao ensino básico.
Como se vê, os dados são irrefutáveis e corroboram a tese que defendo.

Referiu também na altura que "apesar de a escola nas sociedades capitalistas ter contribuído nas últimas décadas para justificar e reproduzir desigualdades, ela tinha um sentido muito próprio". Actualmente, terminada a ilusão de que a formação escolar assegura, no mínimo, um emprego, qual passou a ser, afinal, o sentido da escola?

A educação e a escola, no período imediatamente posterior à II Guerra Mundial, representaram uma laternativa de progresso e de democratização, principalmente para os países europeus destroçados. Assim, a massificação da escola foi inevitável. Além disso, para muitas famílias, a educação escolarizada representava, senão a única, a mais importante alternativa de ascenção social.
Porém, qual é o sentido da escola em tempos de grandes avanços tecnológicos, de diminuição das distâncias, de rapidez do fluxo de informações? Para que serve a escola num quadro de desmancho da sociedade do emprego ou salarial, dentro de uma realidade onde pode haver aumento da produtividade e da expansão económica sem incrementos proporcionais de emprego? Que sentido atribuem as crianças e jovens à escola actual?
Um dos focos principais das críticas diz respeito à sua inadequação às procuras da racionalidade técnico-científica, das novas categorias do trabalho e das frequentemente referidas "competências requeridas" pelo mundo da produção. Aqui estabelece-se um paradoxo bastante interessante, já que ao mesmo tempo em que é criticada por todos, de acordo com interesses diversos e específicos de cada grupo, a escola é unanimemente desejada por todos. Essas críticas e exigências em relação à escola vão desde a ideia da escola como espaço de formação para a cidadania até à ideia de que deve desenvolver no aluno as novas competências exigidas pelo mundo do trabalho.
Ao mesmo tempo, contraditoriamente, resiste-se às mudanças da escola: seja o poder económico que se opõe à educação ecológica, seja o poder religioso que se opõe à educação sexual, seja a universidade que teme o questionamento dos paradigmas científicos da moderna sociedade tecnológica.

Nesse contexto, qual é, então, o desafio que se coloca hoje para dar um novo sentido à escola?

Creio que o grande impasse e o grande desafio para os professores, investigadores, alunos e famílias é encontrar um novo sentido para a escola, uma vez que as promessas de emprego e de estabilidade já não são cumpridas.
Na minha opinião, uma nova escola deve ser constituída para enfrentar os novos desafios sociais, com absoluta clareza de que não lhe cabe a ela a responsabilidade exclusiva de preparar crianças e jovens para a vida em sociedade e para o mundo do trabalho. Este é um desafio a ser partilhado solidariamente de forma a superar paradoxos como o analfabetismo da língua que ainda é um desafio para países como o Brasil.
Caberia ainda, a essa nova escola o papel de desenvolver consciências críticas e espíritos solidários que sejam capazes de reconstruir e reinventar, no dizer de Boaventura de Souza Santos, novos espaços e tempos de deliberação democrática. Esse parece-me ser um bom caminho para continuarmos a romper as barreiras das cavernas, dos guetos, dos isolamentos que continuam a afligir a humanidade contemporânea.

Voltando à questão das expectativas em relação à escola por parte dos  diversos sectores sociais, nomeadamente do económico, que espera dela a atribuição de novas competências para o mundo do trabalho... essa posição representa, na sua opinião, "um entrave para a construção de uma esola que se configure como espaço de luta". Em que medida?

Não creio que essa questão deva ser analisada dessa perspectiva, uma vez que se trata de uma problemática mais ampla. Andy Hargreaves, numa conferência proferida no IV Colóquio de Ciências da Educação, realizado na Universidade Lusófona em 2003, refer-se a uma economia do conhecimento que estimula o crescimento e ao mesmo tempo fragiliza a ordem social, opondo interesses individuais e o bem comum.
Creio que essa questão deve ser analisada nesse contexto mais amplo, pois se por um lado a escola pública se massifica durante a expansão do capitalismo, alardeando a igualdade e a democratização de oportunidades, ao mesmo tempo tem sido responsável pela reprodução camuflada de inúmeras desigualdades.
Esperar que a escola se transforme em espaço de luta parece-me algo temeroso. Não porque eu não concorde com a ideia que a escola possa ser um espaço de rehumanização, mas porque temo que se aumente ainda mais a pressão que se faz sobre ela.
A escola tem sido vista como portadora de todos os males e ao mesmo tempo é extremamente desejada. Alguns defendem que a escola deve formar o cidadão "crítico-reflexivo" e prepara o aluno para a vida social. Outros dizem que a escola precisa de atender a novas demandas e preparar para  trabalho. E há ainda aqueles que dizem que a escola deve formar preservando os valores humanitários. E finalmente, os mais cépticos que dizem que a escola está em crise e não responde aos interesses da sociedade. Parece-me que são demasiadas exigências para a escola. Que tal se começassemos por esperar que ela cumpra o seu objectivo primeiro: ensinar?

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Alberto Albuquerque Gomes
Prof. da Fac. de Ciências e Tecnologia da Univ. Estadual Paulista e investigador da Unidade de Investigação e Desenvolvimento, OPECE da Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Alberto Albuquerque Gomes
Prof. da Fac. de Ciências e Tecnologia da Univ. Estadual Paulista e investigador da Unidade de Investigação e Desenvolvimento, OPECE da Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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