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A criação do sonho, o sonho da criação

CARNAVAL

Nascidas nos morros e subúrbios cariocas as escolas do samba ocupam hoje com seu desfile, o centro de uma festa espetacular. Através de suas fantasias, carros alegóricos e o samba-enredo os desfiles contam historias e encantam o publico com seu ritual.
O enredo proposto é uma historia que se transforma numa linguagem plástica e áudio-visual da ?fantasia?; no barracão os desenhos e projetos são a largada para a confecção das roupas e construção dos carros. Na quadra, o samba-enredo será cantado inúmeras vezes ao largo dos ensaios das alas que compõem o desfile.

Na passarela do samba, o desfile de cada escola é uma exposição de curta duração feita com indumentárias, musicas, carros e muito mais. A comunidade toda trabalha durante o ano para esse momento. O público emociona-se, canta, dança e aplaude as mais variadas historias. Um encontro entre arte, ciência, educação, cidadania, criatividade e valorização dos diferentes saberes e, das culturas, tradições e rituais populares. Esse espetáculo torna-se, então, palco privilegiado para falar e ser escutado, ou, ao menos, olhado.
Antes de viver no Rio de Janeiro tinha um conhecimento que, a experiência ?o que acontece ou o que nos passa[V1] ? diria Jorge Larrosa, fica transformando cotidianamente: marcada por uma serie de pré-conceitos, o carnaval não era outra coisa que uma festa que tinha perdida a sua popularidade para transformar-se numa festa inventada para atrair turistas ?gringos?  difundindo um samba tipo ?marchinha? musical, fácil de aprender e, mostrava uma suposta promiscuidade sexual naturalizada e, não comum fora de América Latina, que, pelo tanto desejo gerado ficaria difícil não vender o produto ?carnaval? encarnado nas imagens de lindas mulatas com poucas e brilhantes roupas, e, lindos malandros sambando até cair; uma outra versão apreendida sobre o carnaval ?principalmente o carnaval carioca- foi a da certa ?perigrosidade? da festa, da cidade, da gente, da rua, dos morros, da vida; em parte, Rio não abandona a sua humanidade pelo tanto, as suas contradições, e, a pesar de ser ?maravilhosa?, é humana: a tragédia e a comedia dançam a cotidianidade na cidade cheia de curvas e variadas cores, como a sua gente.
Através de minha participação em algumas atividades desenvolvidas pela Casa da Ciência (UFRJ) formei parte dum grupo de gente que brincou o carnaval carioca com a Escola do Samba ?Unidos da Tijuca?.
Que relação existe entre carnaval e ciência? Inicialmente esta pergunta parece estranha, mas para a popularização da ciência acadêmica ? que parece ter preguiça em caminhar as ruas e abandonar papeis e ar refrigerado - nada melhor que a Passarela do Samba - a Avenida do Sambódromo Marques de Sapucaí do RJ - palco duma festa espetacular, assistida por milhares de pessoas para apresentar um enredo sobre samba e ciência.
A Casa da Ciência é um espaço de popularização da ciência através de diferentes atividades apresentadas nas mais variadas linguagens. A partir do encontro com o carnavalesco Paulo Barros (atualmente na Escola Unidos da Tijuca, e premiado com Estandarte de Ouro como revelação do carnaval 2004) a idéia de participar da festa foi sendo possível, e plasmou-se na construção do enredo  ?O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível? com o que sambamos as 4500 pessoas que desfilamos na avenida o domingo de carnaval 22 de fevereiro, e com o que festejamos o posto de Escola vice-campeã  para surpresa de todo mundo.
Para alem das premiações, reconhecimentos, aplausos, brilhos e luzes, o que mais mexe com a minha emoção é saber que alguns projetos coletivos que fazem a cultura dum povo ficam para além de supostas ?contaminações? ou ?mistificações?, ficam para alem dos intentos de atrapa- lhos em conceitos ou pré-conceitos, ou pacotes de turismo global ou alternativo: o carnaval, o samba, a gente re significa tempos e espaços e se revela sem rubor revelando ao mundo os saberes que existem desde o principio dos tempos. Uma festa de comunhão entre o sagrado e o profano liberando as duas coisas das dicotomias aparentes, um espaço de alteridade, de encontro e negociação das próprias e estranhas subjetividades, e, sobre todo, uma enorme ?avenida colorida[V2] ? ? como o sambista Catoni cantava - onde os papeis aparentemente fixos perdem a sua rigidez, revelando outras possibilidades: uma adolescente de favela também é a melhor rainha da bateria, um pedreiro também é puxador de cuíca o tamboril, uma dona de casa é também uma elegante baiana, uma instituição universitária que difunde ciências ? Exatas? Humanas? - é também barracão e quadra de carnaval e de produção de projetos culturais vinculados ao samba, ou melhor sua matriz sai dos prédios universitários do Bairro de Botafogo [V3] e inventa filiais no morro de Borel[V4] , nas ruas da Praça Mauá, na avenida do Sambódromo... uma psicóloga argentina e amante do tango é também parte desse povo que criou o sonho, e sonhou a criação...

[V1] ?Notas sobre a experiência e o saber da experiência?, Conferencia no COLE, São Paulo, 2001.
[V2] ?Lendas e mistérios da Amazônia?, samba-enredo composto por Catoni, Jabolô e Valternir, 1970.
[V3] Bairro da zona sul de Rio de Janeiro.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)
Anelice Ribetto
Psicóloga (UNC- Argentina)
Mestre em educação (UFF- Brasil)

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