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Das saudades do passado às saudades do futuro

Não é mais aceitável (?) manter um ensino secundário que se consome na farsa do ingresso ao ensino superior, deixando alunos, professores e pais esgotados para as reais tarefas da formação pessoal, profissional e social que competem a este nível de ensino.

A reflexão que se tem vindo a desenvolver, a nível nacional, sobre o ensino secundário (ES) em Portugal, sobretudo a partir de meados da década de 90, tem permitido evidenciar alguns aspectos que, explicitados, permitem compreender mais claramente a complexidade deste tema. Sem pretender ser exaustivo, e no espaço de que disponho, direi o seguinte:
1. Não está claramente determinado qual é/deve ser o ?lugar? do ES no sistema educativo português, ou seja, qual é ou deve ser a sua função no quadro do sistema educativo português, apesar do seu evidente lugar intermédio entre a educação básica (obrigatória) e o ensino superior, isto se pensarmos na totalidade diacrónica dos três ciclos estruturantes do sistema educativo formal. Tal reflexão deve, obviamente, abarcar as actuais duas vias do ES dito regular: a que conduz à continuidade dos estudos no ensino superior (cursos científico-
-humanísticos ? seja lá o que isto quer dizer) e a que conduz ao ingresso directo no mundo do trabalho (cursos tecnológicos). São conhecidas as posições dos que entendem que a distinção entre estas duas vias deveria ser mais nítida, tão nítida que deixassem de ser vias e passassem a percursos, ou até a caminhos divergentes e sem pontes. Tal não elimina a necessidade de uma clara e desejável diferenciação entre estas duas vias que consagre três aspectos verdadeiramente essenciais:
- desde logo, uma formação geral que garanta uma formação secundária comum a todos os jovens que frequentem este nível de ensino, em nome da qualificação humana dos alunos e da igualdade de oportunidades; qualquer diferenciação precoce nesta vertente é, a todos os títulos inaceitável;
- distinção clara de planos de estudo visando as formações científicas e tecnológicas de modo a satisfazer ? tarefa sempre difícil - expectativas e interesses vocacionais diversificados, assim como legítimas necessidades sociais; esta distinção pressupõe a definição clara dos perfis dos diplomados nestas duas vias, isto é, exige que o plano de estudos dos cursos tecnológicos dignifique o certificado de nível III respectivo e não enrede professores e alunos em trabalho academicista e formal basicamente irrelevante para a formação em causa;
de igual modo, os cursos científico-humanísticos necessitam de um currículo que não reproduza, como actualmente acontece, sob o pretexto do prosseguimento de estudos, uma concepção livresca e factualista das formações humanista e científica modernas e actuantes. Já agora refiro que um dos obstáculos a esta reformulação está precisamente, a meu ver, na subordinação instrucional e funcional do ES face ao ensino superior. Não é mais aceitável ? e já o não é há muito tempo ? manter um ensino secundário que se consome na farsa do ingresso ao ensino superior, deixando alunos, professores e pais esgotados para as reais tarefas da formação pessoal, profissional e social que competem a este nível de ensino. Sem pretender diabolizar a questão do ingresso é, no entanto, evidente hoje o ?espaço? que esta preocupação ocupa na vida de alunos, pais e professores deste nível de ensino. A solução desta questão é antes de mais política e social, antes de ser técnica: acabe-se com a promiscuidade entre exames nacionais de 12º como requisito para a realização do ES e o seu carácter de provas específicas para o ingresso no ensino superior e teremos meio caminho andado; criem-se condições para acabar com os numerus clausus e teremos andado a outra metade. (Claro que há aqui dificuldades de outra grandeza que não se podem ignorar: para que o ES mude no sentido que tenho vindo a defender é preciso que o ensino universitário mude, não propriamente, talvez, na compreensão e extensão dos seus conteúdos mas no sentido social da formação que assegura e na atitude face ao desafio pedagógico que se lhe impõe assumir, por muito que muitos sintam necessidade de o denegrir ou, simplesmente, continuar a ignorar. Agora que o projecto do Governo sobre a Lei de Bases da Educação vai voltar ao Parlamento e que se aproximam os prazos para as decisões relativas à Declaração de Bolonha, talvez seja uma boa altura para tentar decisões articuladas e abrangentes relativas a estas matérias).
Resumindo:
clarificação da formação científico-humanística no sentido de equilibrar a vertente teórica com a vertente praxísitica,  de modo a rentabilizar doze anos de escolaridade que não podem ser reduzidos ao grau-zero do saber-fazer, como actualmente acontece;
clarificação e rendabilização da formação tecnológica visando a credibilização do nível III da qualificação profissional, possibilitando, contudo, se o aluno o desejar, o prosseguimento de estudos no ensino superior; 
reforço de uma formação geral comum que garanta a coesão e a unicidade das formações secundárias, independentemente das suas opções vocacionais (até porque frequentemente este termo é ainda um eufemismo para designar as consequências da determinação social); garantir a coesão e a unicidade das formações secundárias é uma finalidade solidária, progressista e de referência democrática; abandoná-
-la seria uma manifestação de violência social e de retrocesso civilizacional.
Do meu ponto de vista, a concretização destas linhas estratégicas para a qualificação da formação secundária devem constituir parte da solução e não serem encaradas, como o são em amplos sectores, quiçá maioritários da sociedade portuguesa, como parte do problema.


  
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Paulo Pais
Professor, Porto
Paulo Pais
Professor, Porto

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