Todas as crianças nascem cientistas. Nada se aproxima mais do espírito de um cientista que a curiosidade natural de uma criança. Essa curiosidade leva-a a explorar, interrogar, testar, verificar resultados, compreender o funcionamento de tudo o que a rodeia.
O que motiva um petiz a desmontar um rádio para saber de onde vem a voz, é exactamente o mesmo que leva um astrónomo a estudar os confins do universo a fim de perceber a sua origem. Sem professor, nem livros, sem saber sequer o que é um número, a Natureza prepara-o com o bem mais precioso para compreender o mundo: a curiosidade. E o que fazemos nós com esta inestimável qualidade? Embora se trate de um genuína atitude científica, a maioria dos pais prefere classificar a desmontagem de um rádio como um acto de sabotagem. É precisamente aqui que tem início um longo processo de destruição da curiosidade e do espírito de descoberta a que se dá o nome de "educação". Porém os pais não o principal agente deste processo de desconstrução da curiosidade. Vamos seguir o percurso desta criança que desmontava rádios. Mais uns anos e ela entra para a escola. Entusiasmada, imagina que finalmente lhe vão explicar como funciona o rádio, como se forma o arco-íris, para que serve o sangue, porque existem tantas estrelas? Deve ser muito divertido, pensa ela. Porém, a decepção não podia ser maior. "O quê? Para que queres tu, tão novo, saber como funciona um rádio? A escola é uma coisa séria. Não há tempo a perder com essas traquinices de andar a abrir rádios. Que disparate, qualquer dia vinham os teus pais fazer queixa que tu destrui-as os electrodomésticos todos. Devia ser bonito! Ainda nem sequer sabes ler e já queres saber essas coisas todas." E que coisas importantes ele aprende? Primeiro aprende a ler e escrever, e decorar as regras gramaticais. O pequenito, que desde há uns anos que tinha aprendido a comunicar oralmente as suas ideias, de repente viu-se deparado com palavrões de fazer arrepiar os cabelos: palavras esdrúxulas, pretérito prefeito, condicional, mais que perfeito, predicado, e eu sei lá mais o quê. Afinal aquilo que lhe saía da boca não eram palavras, mas coisas com aqueles nomes feios e que deviam surgir de acordo com um sem número de regras complicadas, sem esquecer as intermináveis excepções. Como era possível que o que ele aprendera sem dificuldade, e era tão engraçado e útil, pudesse tornar-se em algo tão complicado e estranho? O nosso amigo agora tinha medo de falar, pois na certa iria dar um pontapé na gramática. A expressão oral tornara-se um território minado, com a professora sempre à espreita de num deslize. Vêm-me à memória o seguinte poema:
Uma centopeia vivia feliz Até que um sapo lhe disse, a brincar: "Com tantos pés para andar nunca te enganas, meu petiz?". Cheia de dúvida de tanto pensar Acabou a infeliz caindo, Sem saber como marchar.
Só depois de ter passado por um período de "aprendizagem" de mais de 7 anos é que ele começa a ter verdadeiro contacto com a ciência e a técnica. Mas atenção, nada de sujar as mãos! A ciência é uma coisa limpa, abstracta, já bem preparada e acondicionada, prontinha a decorar, desculpem, aprender. Os laboratórios são muito caros, dá muito trabalho preparar uma experiência, e só dão confusão. É muito mais fácil abrir o livro e apresentar a verdade tal como ela lá vem, limpinha. Depois é só não se enganar nas fórmulas e resolver os exercícios onde se pede, por exemplo, para medir uma corrente eléctrica, quando nunca foi posto os olhos num multímetro - mas isso é um pormenor. "Se existem no manual fotografias multicolores de células de cebola, porquê dar-me ao trabalho de as ver num microscópico poeirento guardado num armazém da escola? Não me pagam mais para isso, pois não?" Educar vem do latim "educere" que significa extrair. Educar é pois um processo de ajudar a extrair e desenvolver o que há dentro de nós. Educar não é impor um dado saber a alguém, como se tratasse de encher um pote vazio. No entanto, educa-se uma criança como quem doma um cavalo. Primeiro inibindo-lhe a sua energia e espontaneidade, usando um ensino formal e livresco o mais afastado possível do seu mundo de maquinetas e de invenções onde reina a imaginação. Depois disso ele fica pronto para engolir submisso e passivo (sem andar a partir as coisas e sem por em causa o professor) os manuais escolares um atrás doutro. Irá seguir, desta forma, calma e serenamente até conseguir carregar a pesada sela do saber da humanidade. Não é de estranhar pois, que o nosso país tenha tido um papel tão diminuto na ciência e que haja tão poucos cientistas portugueses. Também não devemos ficar surpreendidos com o desinteresse e a recusa dos alunos em aprenderem ciências e matemática. É de estranhar sim, que no final do ensino secundário haja ainda jovens entusiasmados por seguirem uma carreira científica. O nosso amigo que queria saber como funcionava o rádio vai ter de esperar. Esperar muito. Com sorte, se seguir uma carreira de engenharia, ela irá aprender como funciona o rádio daí a 10 ou 20 anos. Mas nessa altura para que serve isso? O entusiasmo morreu, em vez de pulos de alegria, limita-se quando muito a deixar escapar um "hum!". A postura de adulto a outras extravagâncias não permite. Em vez de voltar a abrir um rádio para ver se aquilo é mesmo assim, ou ele próprio tentar fazer um, pousa calmamente o manual sobre a mesa, liga a televisão e folheia o jornal. Isso de fazer essas brincadeiras foi há muito tempo atrás. Num tempo, que ele recorda com nostalgia, em que andava com as maluquices inconsequentes de tentar compreender o funcionamento do mundo. Como afirmou certo dia um cientista famoso: "um cientista é uma eterna criança que não cedeu ao convencionalismo da vida de adulto". Eu não podia estar mais de acordo. Pena é que queiramos fazer adultos crianças que nunca o foram. Chegámos portanto ao paradoxo de a escola ser a principal responsável pela perda de interesse dos alunos pela ciência.
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